Nunu Wu Grande BaíaTangerinas | Esta fruta, pequena e singela, é uma das grandes riquezas da área da Grande Baía Quem visita o sul da China, seja Macau, Hong Kong ou toda a província de Guangdong, por altura do Ano Novo Chinês forçosamente repara na quantidade de tangerinas que, um pouco por todo o lado, enfeitam lojas, entradas de prédios e mesmo as casas das pessoas. Pequenas árvores em vasos, ramos desgarrados ou simplesmente o fruto empilhado em pratos de cerâmica ou metal estão por todo o lado, emprestando tons novos às cidades. “Por quê?”, perguntar-se-á o turista menos conhecedor dos costumes chineses. Que razão leva os chineses a enfeitar os espaços com este pequeno fruto de cor brilhante e alaranjada? A verdade é que a utilidade das tangerinas não se esgota, longe disso, nesses enfeites comemorativos da chegada da Primavera. Pelo contrário, actualmente, só na comarca de Xinhui, na província de Guangdong, muito perto de Jiangmen, uma das nove cidades que constituem a área conhecida como Grande Baía, as tangerinas são responsáveis por um rendimento anual superior a 100 milhões de yuans e cerca de 60 mil postos de trabalho. O uso das tangerinas estende-se da culinária à medicina, passando pelo chá e bebidas espirituosas. Mas, além da polpa, o seu principal segredo reside na casca, cujas aplicações, depois de seca, são consideradas em toda a China um verdadeiro tesouro nacional, tendo a técnica de produção sido considerada, em 2020, como parte do património intangível nacional. Contudo, já desde Outubro de 2006, que as tangerinas de Xinhui e a sua casca seca se haviam tornado produtos sob a indicação geográfica protegida. Casca seca, em chinês, diz-se chenpi (陳皮). Ora chen significa envelhecer/envelhecida, e pi quer dizer casca. No entanto, a fama das tangerinas de Xinhui e da sua casca seca remonta à dinastia Han de Leste (25-220). Portanto, já há dois mil anos que o fruto e a chenpi desta região de Guangdong são apreciados e utilizados por toda a China, devido ao facto de exalarem uma fragância particularmente forte e agradável. De tal modo assim era que a própria imperatriz-regente Cixi, em finais do século XIX, as aceitava como tributo vindo desta província do Sul do país. A chenpi é, pois, desde esses tempos remotos, utilizada na culinária e, sobretudo, na medicina, devido às suas múltiplas propriedades profilácticas e curativas. Assim, durante séculos a região de Xinhui tem plantado tangerinas e produzido artesanalmente chenpi, um produto que muita riqueza e fama trouxe sempre a esta área. Contudo, nas últimas décadas, acontecimentos fundamentais ocorreram e levaram a alterações importantes na sua produção e distribuição. Mudam-se os tempos… Ora, como se sabe, desde os anos 80 anos do século passado, que a China entrou num processo de reformas económicas e sociais que alterou substancialmente o país, impulsionando de modo dramático o seu desenvolvimento e modernização. Na linha da frente destas mudanças esteve sempre a província de Guangdong e, logo, tal movimento em frente não podia deixar de se fazer sentir num dos seus produtos mais prestigiados, a chenpi. Impulsionada pelo próprio governo de Xinhui, a produção de chenpi também acompanhou os tempos, entrando decisivamente num momento de modernização e expansão comercial. Segundo Wu Gurong, chefe da Aldeia de Chenpi de Xinhui, tudo começou em 2003, quando o governo local resolveu investir no desenvolvimento industrial, com o objectivo de reduzir a pobreza e revitalizar as zonas rurais. “Até então, as indústrias não podiam ser mercado e transformar os produtos agrícolas. Nós fomos a excepção”, explicou, ao mesmo tempo que defende que tal não podia ter acontecido se não tivessem existido os apoios políticos necessários. Em 2013, foram investidos mais de 100 milhões de yuans na fundação desta Aldeia da Chenpi, que veio a transformar-se num gigantesco complexo de produção, comercialização e divulgação do produto. Wu Gurong, que até então se dedicava a negócios de importação-exportação, resolveu então entrar de corpo e alma neste projecto. Contudo, nem tudo foram rosas. “Nós não tínhamos experiência e esse foi o principal problema. Não sabíamos como desenvolver o nosso negócio. Então, visitámos diversos lugares para obter essa experiência. Fomos ao Japão, a Taiwan e aos EUA. Finalmente, decidi- mo-nos pela plantação, fabrico, armazenagem e pesquisa, além do desenvolvimento do turismo cultural. Na nossa opinião, todos estes laços são inseparáveis”. Além de decidir sobre como deveria proceder ao desenvolvimento do projecto, Wu Guorong conta que ainda assim subsistiam problemas como a existência de capital suficiente, uniformização e negociações com os agri- cultores. Desde 2011 que o governo local organiza, bienalmente em Xinhui, um Festival Cultural de Chenpi, no qual a Associação das Indústrias de Chenpi assume um papel fundamental. “Além da cerimónia da abertura, realizamos sempre uma conferência de imprensa e o lançamento de novos produtos durante o festival”, disse Cen Weibin, o presidente da associação. Criada em 2002, a associação tem como objectivo consolidar a produção, servir os sócios, divulgar a cultura de chenpi e incentivar o seu desenvolvimento industrial. Actualmente, o organismo conta com 326 sócios, que trabalham na cadeia industrial de chenpi. Para além disso, na área financeira, Cen Weibin afirma que, em 2019, a associação cooperou com o Banco Comercial Rural de Jiangmen, no sentido de proporcionar em- préstimos destinados aos agricultores. Estes podem conseguir empréstimos na banca, através da hipoteca da sua futura produção. Um ramo em Macau Em 2018, a empresa Xin Bao Tong Chen Pi, de Jiangmen, uma das mais importantes na comercialização dos produtos relacionados com a chenpi, estendeu os seus negócios a Macau, fundando aqui uma sucursal. Chen Baizhong, o presidente da empresa, explicou a razão que o levou a dar esse passo: “Uma importante fa- tia da população de Macau tem origem em Jiangmen, incluindo Xinhui, senão mesmo a maioria. Todos os anos, estes conterrâneos voltam cá para prestarem homenagem aos antepassados, sobretudo durante o Festival Qingming (no qual se presta homenagem aos familiares falecidos). Eles compram sempre chenpi e, frequentemente, pediam- me para estabelecer uma loja em Macau, na medida em que assim seria muito mais convenientes para os que gostavam de comprar e consumir chenpi”. Ele assim fez. E não está arrependido. “Outro dos meus objectivos é usar Macau como plataforma para apresentar a chenpi de Xinhui, porque Macau tem um papel importante no mercado internacional”. Chen Baizhong adianta que já criou muitos meios de venda na área da Grande Baía de Guangdong-Hong Kong-Macau, mas sublinha que a nossa cidade ainda tem um papel de destaque quando se pretende atingir mercados estrangeiros. “A posição de Macau ajuda-nos afazer com que os nossos produtos sejam divulgados em todo o mundo. É diferente das outras cidades da Grande Baía, cujo mercado é a China continental. Macau é uma cidade turística mundial e multicultural, por isso queremos divulgar a cultura gastronómica da chenpi de Xinhui usan- do Macau como plataforma” explicou Chen Baizhong. E remata: “Temos confiança em Macau. Por isso, a empresa deu prioridade à fundação da sucursal em Macau ao invés de o fazer em Hong Kong”. Do passado para o futuro A chenpi tornou-se assim num bom exemplo de como um produto tradicional pode ser reaproveitado, através de novos procedimentos, nomeadamente da modernização de processos industriais e novos de métodos de marketing. Para elevar o valor da chenpi, Ou Baiyu, director-geral da Jiangmem Palace Internacional Food, aposta no fabrico para o desenvolvimento a longo prazo. “A chenpi de Xinhui tinha poucas utilizações no passado, principalmente na medicina ou em sopas. Se os produtos agrícolas não forem industrializados, o seu valor dificilmente será aumentado,” explicou. E, de facto, nos últimos anos assistiu-se a uma importante modernização dos processos industriais de tratamento da produção e tratamento da chenpi, o que veio possibilitar maior qualidade no pro- duto final e uma extensa lis- ta de utilizações posteriores. Por outro lado, o aumento do consumo também tem satisfeito os produtores agrícolas que assim têm possibilidade de es- coar as suas colheitas. Ou Baiyu congratula-se, sobretudo, pelos resultados obtidos este ano. “O volume de negócios do primeiro trimestre já alcançou o volume de negócios de todo o ano passado. Desde a pandemia que a população se foca mais na saúde e na manutenção da boa forma física. Então, a chenpi corresponde a estes desejos. Sobretudo, a população que dispõe de uma melhor qualidade da vida, procura sempre os melhores produtos”, justificou. Em Xinhui, o valor da chenpi também depende da sua idade. O processo de seca da casca ao sol leva pelo menos três anos. Um ditado popular afirma que “um tael de chenpi é igual a um tael de ouro e chenpi de cem anos é melhor que milhares de taéis de ouro”. A tangerina e a sua chenpi representam assim um dos “valores dourados” da Grande Baía e de toda a China. Este nome “tangerina”… As tangerinas têm a sua origem na China, tendo sido levadas para a Europa pela mão dos portugueses, no século XVI, depois de se terem estabelecido em Macau. Na altura, o melhor local para o seu desenvolvimento era uma colónia portuguesa no norte de África, a cidade de Tânger. Daí que estes frutos também conhecidos por laranjas mandarinas, por terem vindo da China, muito apreciadas na corte real lusitana, terem sido baptizadas de tangerinas, como referência à cidade marroquina onde eram produzidas. Quando a princesa Catarina de Bragança casou com o rei de Inglaterra, em 1662, levou este consigo este fruto, bem como o chá chinês que passou a ser uma bebida de referência nas ilhas britânicas. Vai um chazinho de tangerina? Entre outros produtos, tal como bolo lunar, bolachas e o baijiu (vinho chinês), a chenpi é muito utilizada como aditivo em chás, para melhorar o sabor e exercer as suas funções terapêuticas. A chenpi pode combinar com seis tipos de chá, mas o seu melhor desempenho é, segundo os especialistas, quando misturada com Puerh. “No entanto, descobrimos que o efeito da casca de tangerina com chá preto ou com chá branco é também muito bom”, revela Zhong Lijuan, da empresa Xin Bao Tong Chen Pi. Quem visita Xinhui encontra uma enorme quantidade de marcas de chás, embalados em fascinantes caixas, que utilizam a chenpi. O que se torna difícil é saber qual escolher. A fruta do Ano Novo Chinês Ao marcarem o início de um novo ano lunar, famílias e comerciantes de Macau e, em geral, do Sul da China, compram vasos de tangerinas para decoração e para dar sorte. Mas por que razão estes citrinos nos protegem da má sorte e nos proporcionam abundância ao longo do ano que entra? Será talvez pelo facto de serem brilhantes, quase douradas, sinais de alegria e de riqueza. De facto, as tangerinas têm glândulas oleosas que dão à sua pele fina uma camada brilhante que as fazem parecer especialmente glamorosas. Também o facto de serem numerosas nos ramos poderia indiciar um símbolo de prosperidade. Mas as coisas não se ficam por aqui. Estas tangerinas há muito que são um fruto extremamente apreciado. Na corte imperial, era até oferecido como homenagem aos visitantes. Durante a dinastia Han chegou mesmo a existir uma espécie de ministro das tangerinas, para as escolher e apresentar à realeza. Mas, como acontece muitas vezes na cultura chinesa, também estamos perante um jogo de palavras. Em cantonês, tangerina diz-se gat zi (桔子). Ora a pronúncia de gat (桔) é a mesma que gat (吉, “bons auspícios”). Logo, além da sua aparência e história real, as tangerinas trazem consigo a conotação de trazer boa sorte. Quando se trata de ditados populares chineses do Ano Novo como gat coeng jyu ji (吉祥如意, “Auspicioso, tudo acontece de acordo com a vontade de cada um “), daai gat daai lei (大吉大利, “Muito auspicioso e suave”), ou gat sing gou ziu (吉星高照, “A estrela auspiciosa que brilha no alto”), as pessoas por vezes substituem o primeiro caractere por um que representa uma tangerina. Ilustrações de tangerinas podem até substituir o primeiro caractere nas folhas fai chun (揮春), que são decorações coladas nas portas durante o período do Ano Novo chinês. É também tradicional, entre as gerações mais velhas, dar tangerinas às crianças e levá-las quando visitam casas de familiares e amigos. Como fazer chenpi e os seus tipos O processo de fabrico do chenpi é uma arte milenar. Ao todo, são necessários 20 quilos de tangerinas frescas para fazer 1 quilo de chenpi. Quando as tangerineiras frutificam, alguns dos frutos da árvore são colhidos enquanto ainda estão verdes. Isto permite que os restantes frutos recebam mais nutrientes. Os frutos são parcialmente colhidos à medida que adquirem uma cor alaranjada. Finalmente, permite-se que os melhores frutos amadureçam até atingirem uma cor avermelhada, sinal de que que receberam mais nutrientes. Nada é desperdiçado pois os frutos verdes e cor-de-laranja são utilizados para fazer chenpi de grau inferior, enquanto os frutos avermelhados destinam-se a chenpi vermelho, considerado superior. Assim, existem três tipos de chenpi, de acordo com as diferentes fases de maturação: verde, laranja e vermelho. A pele do fruto é cortada e removida numa casca de uma só peça, como uma flor de 3 pétalas. A pele da tangerina tem cerca de 1mm de espessura nesta fase. Depois é seca ao sol durante 5 – 6 dias. As cascas secas ao sol são embaladas em recipientes herméticos, mantidas num local fresco e seco e trazidas para o sol uma só vez por ano. Mesmo o chenpi de grau mais baixo requer pelo menos três anos de armazenamento e exposição ao sol. Quanto mais antigas forem as cascas, melhor, pelo que acontece existirem cascas com mais de 50 anos. Os chenpi com 3 anos de idade ainda têm uma fragrância cítrica. Com 10 anos de idade adquirem uma fragrância de madeira envelhecida. A partir dos 30 anos de idade exalam uma fragrância medicinal. Somente o chenpi vermelho melhora com uma idade superior a 10 anos; o chenpi verde e laranja não. A pele do chenpi vermelho é dura, muito fina, tornando-se mais fina com a idade. Quanto mais tempo se mantém o chenpi vermelho, mais perfumado se torna.