Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasO futuro de Speedy González e do gato Sylvester [dropcap]H[/dropcap]á pouco mais de um mês, o festival literário “Fólio” deu, mais uma vez, abertura ao Outono e à rentrée (não apenas literária). Podia ter sido outro o jogo e o terreno de jogo, mas este desejo de marcar o tempo e de o reiniciar é irresistível. O que nos faz saudar os recomeços é o mesmo que leva um gato com dezasseis anos a mamar no meu pulso, macerando a epiderme. Aquilo que advém tem sempre sinal (ou insídia) de coisa que permanece, ou que antes, de alguma maneira, já teria sido instilada ou mesmo experienciada. Para a mesa em que participei, redigi um texto que acabei por não ler. Nesse texto tentei predizer o que seria o “Fólio” daqui a 130 anos. Já se sabe que prever é sacudir inferências: um pouco como abrir a toalha na varanda para a livrar dos vestígios da refeição. O linho mais puro convida inevitavelmente ao desalinho. Daí que, no meu exercício oracular, eu tenha chegado a algumas conclusões que agora reato e reelaboro (com o devido colorau) e que dizem respeito à velocidade, à tecnologia e ainda ao que nos parece ser sempre um dado adquirido (incluindo aqui a nossa pegada simbólica). Juntando-as todas ao jeito de um trevo de muitas folhas, dir-se-ia que Speedy González se há-de transformar, um dia, no queijo que sempre perseguiu, mas sem deixar de ter no gato Sylvester uma referência segura. Comecemos pela velocidade evocando um filme de Marcel L´Herbier, A desumana (L´Inhumaine, 1924), que celebrou o tema através da sucessão de planos de um automóvel que ia originando mudanças de forma no rosto do condutor, na viatura e na paisagem. Uma explosão de design incorporada numa obra de arte (curiosamente, uma arte ainda à procura de si própria – o ‘film d´art’ dava então os primeiros passos). É um facto que todas as linguagens com que nos habituámos a viver nos últimos quatro milénios são de base analógica, das argilas do Gilgamesh a Marcel L´Herbier, e não estão preparadas para significar a aceleração virtual da vida que está em curso no planeta. Em 2148, o design já não explodirá, pois a explosão já terá encontrado uma morfologia adequada para serenamente respirar. É verdade: Speedy González e o queijo serão nessa altura um único ser, coisa híbrida e boa de se ver. Passemos à possibilidade de uma nova tecno-antropologia, coisa que não é novidade pois a ficção científica já imergiu, há muito, nesse tipo de mundos. O que hoje é um simples bypass será amanhã uma incorporação tecnológica em espaços da mente que nos permitirão fazer novas perguntas e permeabilizar o ser a novas realidades. O teletransporte e a corporeidade estarão de certeza no centro dessa operação. O chapéu largo de Speedy González tornar-se-á numa espécie de anel de saturno polvilhado de software açucarado. Continuemos o diagnóstico, dando agora atenção àquelas conformidades que parecem sempre adquiridas e ilusoriamente eternas: vai ser muito difícil explicar no Fólio do Outono de 2148 aquilo que aprendemos a designar por “ficção” e por “realidade” (nos mitos antigos, tal separação não existia). Deparar-nos-emos com a mesma dificuldade com que, hoje em dia, se tenta explicar o que era a “pneuma” para os estóicos (força vital que perpassa todos os corpos do cosmos, mantendo-os unificados e conferindo-lhe qualidades). Speedy González já nem se lembrará, daqui a 130 anos, do que eram dantes os resorts do México, quanto mais do rosto oval de Frida Kahlo quando – nem ela própria…o imaginaria – era um ícone da pop. Por fim, estou em crer que o chicote e o gancho que surgem esculpidos no túmulo de Tutankámon terão a sua sequência lógica no futuro. Será difícil o humano, mesmo inseminado pela destreza dos chips, desprender-se do seu cariz simbólico. E. Cassirer caracterizou o dado simbólico como algo singular e sensível que, sem deixar de ser o que é, adquire a força de apresentar à consciência imagens universalmente válidas. Esta transposição que nos permite ser e superarmo-nos ao mesmo tempo, prendendo a ilusão a uma possível consecução é parte íntima do humano. É por isso que o nosso olhar é reflexivo e projectivo, pois incorpora sempre o olhar do outro, o olhar do mundo que nos atiça, define e interpela. Podemos desejar esperando e podemos desejar reivindicando-o instantaneamente. De uma maneira ou de outra, enquanto existirem humanos, ‘eu’ serei sempre ‘eu’ no mundo. Isto é: não haverá Speedy González sem Pancho Vanilla e sobretudo sem o temível gato Sylvester de unhas de fora e sempre a rondar por perto.