Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasA irrelevância do solstício Retiro o que dissera porque as palavras limitam-se a flutuar rio abaixo, obcecadas por uma deriva de perfeição. “Tu não existes”, dizias enamorada da frase rude como se eu ainda estivesse à tua frente. Certo. O que é isto de grunhir, soletrar ou escrever? Onde nos leva a ribanceira? Quando foi que tudo começou? Une-nos um espírito e um santo tão sacrílegos que Deus ruborizado se escondeu e assim permanecerá até ao fim do nosso tempo. A massa informe das coisas insiste em colar-nos as pálpebras. Dificilmente distingo, na tona da peneira, a farinha dos dias, os grânulos das noites, pedaços de almas e fímbrias de corpos. Vendado prossigo. E antolhado me recordo de ter havido uma existência qualquer. Nela bebia o húmus alcoólico e a seiva esbranquiçada de mil gerações. Então percebi a lição de me tornar poeira e fazer-me aos ventos das infinitas direcções. E nesse estado ínfimo me encontro enquanto sóbrio me disperso. Nessa condição, entrarei em teus olhos ainda que nunca me vejas. A tua mão percorrerá o ar sem me tocar. Serei o mosquito mínimo nos teus ouvidos, o zumbido persistente da matéria, a forma do abismo por atravessar. Nesse campo de mortos serei todos eles, as armas caídas e serei nada. Multidões de sonâmbulos perseguem na noite o seu próprio corpo num eterno afã de encontrar. Mesmo supondo que tal façam sem astúcia ou o uso da razão, ainda assim dormirão algemados a sonhos, dos quais pela aurora não haverá qualquer memória. Um fruto permanece por colher na glabra árvore do amor Retomo a estrada dos sentimentos desasados. É tempo de abrigar os viajantes imprudentes, ao som dos sapos que coaxam na beira dos vulcões. É impossível voar. Passa a banda irmanada, a banda apropriada, soprando a música séria dos funerais. A costumeira cavalgada de valquírias canibais. O som do sangue não respeita os desejos do silêncio, até ao vácuo da mente se sobrepõe. O oceano vomita cadáveres nas areias de um país. Só aos mortos interessa o seu nome, a sua fama, a riqueza disforme das suas gentes. Ninguém sabe o que fazer. Já pouco há de comer e de bebida um resto turvo arde bravo na garganta. Quedamo-nos sem fala, boia a mala onde dantes cabiam as nossas precárias vidas. O vírus separa as montanhas dos vales e as cidades das lezírias. Ali mesmo onde era suposto termos sido felizes. O vírus nada separa que não estivesse já separado, ainda que parecesse enroscado, ataviado de festa. Dei por um homem vestido de sol e uma mulher vestida de lua. Ele tremia gelado. Ela ardia em febre crua. Na transparência das peles, uma veia regurgitava, talvez uma verdade antiga. Tão antiga que ninguém se lembrava da sua língua. Teremos de esperar pela tradução dos tempos. E confinar os lamentos que como coro ecoam. São milhões de vozes, filhas da torre invisível que alcançou o céu. Todas elas lancinantes como espadas, cerradas como punhos, unidas como romãs. “Não entendo a tua língua”, dizias. E nada havia para entender nos gestos que a voz fazia. Serei coxo, serei cego, serei rei e vagabundo. Pintarei o céu do roxo que minha mãe me ensinou. De todo este lerdo mundo, foi a cor que me sobrou. Uma cor forte, sabor de acetona, a cobrir um invisível firmamento. Multidões de sonâmbulos perseguem na noite o seu próprio corpo num eterno afã de encontrar. Mesmo supondo que tal façam sem astúcia ou o uso da razão, ainda assim dormirão algemados a sonhos, dos quais pela aurora não haverá qualquer memória. Um fruto permanece por colher na glabra árvore do amor. Hoje o dia primará pela sua excessiva extensão e um acréscimo negativo de sombras. A luz erguer-se-á como um vício. Aproximo-me da janela, ainda nu mas já cansado, e recolho na pele o primeiro raio de um solstício. O planeta roda e em breve outros dias nascerão. Eu não ficarei na mesma. Tudo o que fiz ou desfiz, o que li ou inventei, hospital ou falésia, não chegará para o óbolo quando soar a minha hora.