Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasDa serenidade E o colapso não é uma fronteira última, nem o que vimos descer uma vitória da queda, sempre em algum lugar havemos de cair mais fundo que o nível da interdição. Mergulhamos até ao chão oceânico por que tudo são partes do mundo conquistado – que nós, somos grandes produtores materiais, somos a própria substância da multiplicação, e «se morre, nasce…desmorre… » não nasce o organismo morto, mas a montagem da carga em cadeia na sua ampliação. Conhecemos o descanso depois da luta, e o entusiasmo renovado após as derrotas, que enquanto predadores não nos é possível ficar sem cair, apenas quietos, que esta combustão tem de queimar, mas nunca os serenos destinos servidores que carregam outras leis, planeiam a deriva da condição (perigoso bem, este também) pois que estão revestidos de colunas salvíficas, de frente para a circunstância, o tangível, com todos aqueles que afrontam a existência em golfadas de ambição e movimento descontrolado, eles alinham os desígnios e impedem a derrocada, que a vida em ondas de choque contínuas terá as suas sentinelas a impedir a força do Trovão. E eles estão sós. O mundo necessita da sua solidão, passa por eles a estrutura subtil da restauração da harmonia, do controle do desastre, desviando-o, e melhor que isso tudo, transformado. Necessitam de pouquíssimas estrofes estes tocadores de harpa de teias de aranha, eles que se infiltram, onde queda e condição não devem cegamente passar . Não os reconhecem as gentes enquanto pedras angulares no seu exaustivo labor da pouca arte de viver, mas, ser-lhes-á servida a lembrança quando as coisas serenarem. A eles, sempre lhes custará assistir à queda que parece sem fim dos grandes infortunados, à zanga terrível dos insubmissos, à rudeza dos factos, e aos seus inesgotáveis sofrimentos, por serem mais frágeis, por não conseguirem entender tais realidades: pois suas realidades têm um olho dentro da circunferência que perscruta todos os lados em simultâneo, e nesta paragem, dão-se conta da energia perdida que só eles ainda imaginam para onde vai. Tudo isto é vida? É vida! Mas não entendível. Os condenados parecem ter dela áspera memória, e por isso inventaram as chacinas como acto último de uma estranha compaixão. Ficam então em órbitra os intocáveis, aqueles que entre a plenitude e o abismo se mantêm serenos, que a estranheza de que dão provas não é senão uma conquista pela graça, uma certa aceitação que não renega no entanto a dura coragem para defender aqueles que dependem do fluxo dessa mesma vida. Terminamos dentro de momentos o mundial circular agente pandémico, mas a força dos materiais nunca se dissolve, esculpindo ao redor fileiras de intenções. E outros grandes desassossegos em marcha ocorrerão: Gaia magoada, em revolta fera por dentro das suas raízes – dores fêmeas de um planeta cuja revolta já hoje desconhecem os homens – trazendo-lhes o conhecimento inesperado do que é uma mulher, que embrulhados nas avalanches e nos fogos, incapazes de conduzir a própria marcha humana, Serenamente vimos estes abismos de olhos abertos, e nem sinal de julgamento foi equacionado. Nessa dimensão não se desejará apartar os seres das suas quimeras, eles sofrem já demasiado. Todas as épocas foram duras, porque duro é o Humano, e se houver entre eles baluartes, será ainda essa voz escondida e vivificante dos poetas trazendo lembranças. Só que estamos num outro patamar da consciência, e o que aqui foi dito, suspeito ainda que devia ser calado, mas há momentos que não podemos mais.
António de Castro Caeiro Artes, Letras e Ideias hOração da serenidade [dropcap]“D[/dropcap]eus dá-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, a coragem para mudar as coisas que posso mudar e sabedoria para conhecer a diferença.” A oração da serenidade (1943) é atribuída a Reinhold Niebuhr, um dos teólogos mais conhecidos na América, invocado até pelos presidentes Clinton e Obama. Começa a ganhar notoriedade com os alcoólicos anónimos (A.A.) quase logo desde o princípio da sua formação, mas encontramo-la gravada em toda a espécie de objectos, de medalhas a artigos de olaria, nos EUA. É nela que os grupos de ajuda aos doentes de adição dos A.A. já referidos aos N.A. (Narcóticos Anónimos) e outros doentes com outras adicções têm encontrado consolo. A figura principal invocada na oração é a serenidade. Como se fosse um poder quase divino, talvez até se devesse dizer uma divindade, que se afastara da vida. Tê-la-emos conhecido no passado, na placidez dos dias já há muito idos. A serenidade não é apenas mental. Nunca nada do que acontece na existência humana é “só” mental. Em sentido literal, em latim, é sereno o céu e a lua, talvez da palavra em sânscrito para céu “svar” e do grego para raio luminoso “selas”. No céu nocturno, vê-se a lua brilhar. O céu azul é iluminado pelo sol. Na serenidade mental, independentemente do que se passa lá fora, mesmo nos dias de tempestade, tudo é sereno. Na intranquilidade interior, nenhum dia de bom tempo deixa de ser conturbado. A invocação da serenidade faz-se quando há coisas que perturbam, se agitam, fazem perder o sossego. Ninguém aguenta muito tempo atravessar momentos confusos. O que pede a prece? Pede para aceitar o que não eu não sou capaz de mudar, o que eu não tenho o poder para mudar, o que não consigo mudar. E o que é isso? Não pode ser tudo? Não é um convite à desistência? Os doentes de compulsão terão de aceitar a sua adicção? Terão de aceitar a situação global da sua existência? Não é isso aceitar a doença? Não é a morte em vida? Pode ser aceitar o modo de ser como se é. A adicção resulta de uma obsessão compulsiva. A estrutura existencial confunde o centro com a periferia. É difícil estar consigo a sós, quando somos obsessivos e compulsivos. O comportamento adictivo faz-nos sempre querer qualquer coisa a que nos dedicarmos. Tal como São Paulo denuncia o seu estado de escravidão, para se entregar a Deus e à possibilidade que seja feita a Sua vontade, nenhum paciente de uma obsessão é insensível ao seu sentido de vida: querer sempre mais do que lhe dá prazer, substituir o que deixa de dar prazer por outra coisa qualquer que dê prazer. A vida decorre entre a ânsia da obtenção de prazer, o prazer obtido e a ressaca. É aqui que reside a possibilidade de os chocolates terem metafísica. Um chocolate existe na antecipação dele, no momento em que é comido, no arrependimento de ser comido. A serenidade faz ver como somos. Vivemos entre a ânsia de uma possibilidade sem medirmos a consequência da sua perseguição, o momento da contracção de prazer, o arrependimento por todos os motivos, sobretudo porque a agenda da compulsão não é nossa. A tristeza da vida dedicada a conteúdos compulsivos é que não somos os protagonistas das nossas existências. Não temos vontade que seja nossa. Não temos querer. O querer é de uma vontade que nos dá e nos expulsa de nós próprios. A serenidade faz ver esta estrutura de uma forma extrema, como a nossa raiz das coisas. Mas há um outro pedido que fazemos à serenidade, de que interceda por nós junto da coragem. A coragem para mudarmos as coisas que podemos mudar. A mudança é possível. Podemos viver como gostaríamos de viver e não apenas deixar-nos de viver como não gostamos de viver. Não é apenas precisa a coragem para a desistência de uma hipótese de vida que não nos leva a lado nenhum. É necessária a coragem para um encontro com a possibilidade da mudança. A obsessão é a estrutura da própria existência. A vida acontece entre o primeiro momento e o derradeiro não testemunhamos nenhum e, contudo, esses momentos lançam sobra sobre nós, projectam-se ainda e já nas nossas vidas. Fixamo-nos em conteúdos obsessivos por uma confusão entre nós e as coisas, entre um amor e as coisas que julgamos amar, em quem pensamos de manhã à noite, mas que nos podem destruir. A coragem que a serenidade nos dá revela-nos o nosso amor e o nosso amor liberta-nos não nos escraviza. A serenidade dá a ver a diferença que há entre a impossibilidade de mudança da vida e a possibilidade de mudança do conteúdo da vida. A aceitação da estrutura da vida entre o princípio e o fim. A possibilidade de se compreender que o apego ao que dá prazer confunde a loucura da alteração da consciência com amor. O amor é totalitário, mas não prende, não subjuga, não existe entre a ressaca e a bebedeira provocada por uma substância do mundo. Liberta e lança-nos para a sua própria possibilidade possibilitante, faz-nos da altura do céu em toda a sua extensão, com todo o seu azul. O ser que eu sou deixa de estar hermeticamente fechado entre a ansiedade para estar fora de mim e a obrigação em estar em mim na ressaca que só se vence com outro shot, outra aspiração. Eu aceito que sou assim e posso mudar ser assim ao mudar de sentido, não de existência. Na formulação que Reinhold Niebuhr terá preferido da oração da serenidade lê-se: “Deus, concede-nos a graça para aceitar com serenidade o que não pode ser mudado, a coragem para mudar o que deve ser mudado e a sabedoria para distinguir uma da outra.” A serenidade é uma das faces da verdade.