Selecção do júri (Parte III)

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os dois artigos anteriores analisámos a selecção do júri e a língua usada durante o julgamento de Donald Tsang. Hoje vamos debruçar-nos sobre os bastidores do júri, antes de ter sido revelado o destino do antigo Chefe do Executivo de Hong Kong.

Um dos jurados foi excluído pelo juiz um dia antes do início das deliberações, deixando o Tribunal envolto numa aura de mistério. O juiz Andrew Chan Hing-wai, declarou,

“Registaram-se algumas ocorrências que, no entanto, não nos dão motivo para preocupação.”

O juiz não adiantou mais explicações para a sua decisão. Assim, o júri ficou reduzido a oito jurados. No final da audiência o colectivo retirou-se para deliberar. Após um largo período de debate o júri não conseguiu chegar a um consenso, que no mínimo exige o acordo de seis jurados. Em resultado desta situação Donald Tsang não pôde ser condenado.

Agora que o julgamento acabou, o mistério da exclusão do jurado já pode ser revelado.

Certo dia, durante a hora do almoço, o jurado, a quem nos referiremos como Mr. Q, foi ter com Chip Tsao, uma personalidade mediática apoiante de Donald Tsang. Mr. Q, que era desde há muito fã de Chip Tsao, tirou-lhe fotografias e esteve à conversa com ele por algum tempo. Durante a conversa Tsao perguntou-lhe:

“Você é de Xangai?”

Ao que o outro retorquiu:

“Não, sou de Pequim.”

Um funcionário que se apercebeu da situação, separou imediatamente Mr. Q dos outros jurados e reportou o sucedido ao juiz. O funcionário ficou preocupado com possíveis interferências exteriores na decisão do jurado, até porque sabia que Tsao estava sentado na galeria ao lado da família de Tsang. O apoio de Tsao a Donald Tsang também é do conhecimento público. O juiz, temendo a parcialidade de Mr. Q, exclui-o do júri.

Como referimos a semana passada, a condição de jurado é contínua, só se considerada interrompida quando o julgamento termina. Durante este processo, os jurados não podem ser influenciados por terceiros. Este é um dos motivos pelos quais não estão autorizados a comparecer nos seus locais de trabalho. A conversa de Mr. Q com Tsao origina uma situação idêntica. Antes da decisão ser tomada, o jurado ao serviço do Tribunal, não pode contactar com ninguém. Possivelmente, nem Mr. Q, nem Tsao, tiveram consciência de que a tal conversa informal e as fotos poderiam vir a ter consequências graves, mas baseando-se nos princípios de justiça e de igualdade de oportunidades, o juiz excluiu Mr. Q.

A decisão do juiz foi correcta. A lei tem de ser encarada com seriedade, porque estabelece a regra pela qual todos se regem. Se o juiz não a levar a sério, quem a levará?

Após 14 horas de deliberação, os oito jurados não chegaram a consenso, que pede como foi dito, um mínimo de seis votos a

favor de uma decisão, pelo que não foi pronunciado nenhum veredicto quanto à culpabilidade ou inocência de Donald Tsang. Às 23.05 o júri comunicou ao juiz, por escrito, a impossibilidade de estabelecer um veredicto. O juiz recusou-se a aceitar a situação e pediu que voltassem a reunir. A discussão prosseguiu até às 5.15, altura em que os jurados voltaram a comunicar ao juiz:

“Após debate exaustivo, o júri não conseguiu que pelo menos seis jurados chegassem a consenso. Cada jurado defende firmemente os seus pontos de vista. Decidimos terminar.”

O juiz dispensou os jurados, afirmando:

“Sei que a vossa tarefa é difícil, mas cumpriram-na de forma consciente.”

“Com estas palavras vos agradeço. Estais dispensados.”

É o segundo julgamento que Donald Tsang enfrenta pela acusação de corrupção passiva, relacionada com a troca de favores com uma estação de rádio local. O primeiro julgamento tinha terminado precisamente da mesma forma que este, ou seja, com um empate do júri. Mais uma vez Donald Tsang não pôde ser considerado culpado.

Mais tarde, o Tribunal foi informado que o Secretário da Justiça não pretende repetir o julgamento. O juiz aceitou a decisão e arquivou o caso, que necessitará ainda da aprovação do Tribunal de Primeira Instância, ou do Tribunal de Apelação.

“Não é invulgar que seja pedido um novo julgamento se surgirem novas provas e se for considerado do interesse público.”

Em resumo, o caso de corrupção passiva contra Donald Tsang terminou. Em todas as investigações criminais que decorrem em Hong Kong, os investigadores reúnem o máximo possível de provas, para fornecer à acusação. Neste processo, é muito provável que nem todas as provas reunidas tenham sido entregues à acusação, porque se algumas delas beneficiassem o réu, deverão ter sido entregues à defesa. Portanto, é muito pouco provável que surjam novas provas acusatórias. Além disso, Donald Tsang pode alegar “gravidade extrema” se for chamado mais uma vez a Tribunal por esta acusação.

Seja como for e por agora, para Donald Tsang e para o júri este caso está encerrado.

21 Nov 2017

Selecção do júri (II)

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o artigo da semana passada analisámos parte do processo de selecção do júri presente no julgamento de Donald Tsang, antigo Chefe do Executivo de Hong Kong. A utilização da língua inglesa e um pedido de isenção do dever de jurado foram as questões debatidas. Hoje continuaremos a discussão do caso.

Um dos jurados presentes neste julgamento é uma enfermeira que exerce num hospital do Governo. As suas funções obrigam-na a trabalhar dois sábados por mês. Como o julgamento decorre de segunda a sexta, não está isenta de trabalhar nesses dias. A jurada reclamou formalmente junto do juiz a este propósito.

Quase em cima da hora, a Directora do Departamento de Saúde, Drª. Constance Chan Hon-yee, foi convocada para o banco das testemunhas. Pediu desculpa pelos incómodos causados ao Tribunal, mas, adiantou não poder assegurar que a enfermeira viesse a ficar isenta do trabalho ao sábado durante o período do julgamento.

A Drª. Constance Chan Hon-yee explicou que a enfermeira tem um contrato que a obriga a trabalhar dois sábados por mês. O regulamento da função pública, bem como exemplos anteriores, indica que o sábado não está abrangido pela isenção de prestação de serviço, por isso a enfermeira deve ir trabalhar. Acrescentou ainda que este caso não é simples, e que dependerá da decisão do Secretário da Função Pública, se ela deverá ou não comparecer ao serviço nesses dias.

Mas o juiz ripostou:

“E se a decisão tomada estiver errada?”

Citando a Ordenança do Júri, o juiz esclareceu que o julgamento é um processo contínuo, que não é interrompido quando a sessão diária termina.

O juiz também realçou uma provisão incluída na Ordenança do Júri, que impede eventuais casos de discriminação dos jurados por parte dos seus empregadores. Se o Governo da RAEHK não abrir uma excepção, estaremos perante um caso de “RAEHK versus RAEHK”, ou seja, um processo jurídico em que o queixoso e o réu são a mesma entidade.

O juiz criticou ainda os termos em que estava escrito o fax que a Drª. Constance entregou ao Tribunal. No documento podia ler-se “não nos opomos a que a enfermeira seja dispensada” para prestar serviço como jurada.

“O vosso departamento não está a fazer um favor ao Tribunal, está a cumprir um dever cívico.”

O juiz censurou severamente a atitude do departamento, afirmando que podia incentivar outros empregadores a seguir-lhe o exemplo, deixando assim os membros do júri à mercê da “exploração”.

“Esta atitude não abona a favor da boa política governamental.”

O juiz solicitou que o Governo deliberasse sobre o assunto e que enviasse uma resposta na segunda-feira seguinte.

No dia marcado, o advogado Jin Pao, representante do Governo, informou o Tribunal que a administração concordava com o seu ponto de vista e que a enfermeira seria dispensada de qualquer serviço no Hospital enquanto o julgamento durasse. O advogado afirmou:

“O Governo reconhece a importância do serviço prestado pelos jurados.”

Acrescentou ainda que, posteriormente, não haveria qualquer dedução aos períodos de folga da enfermeira.

Não há dúvida que o Governo da RAEHK tomou uma boa decisão. Seguiu as indicações do juiz. Evitou colocar-se numa situação em poderia ser criticado por não obedecer à lei. Contudo, este caso revelou que a formulação da Ordenança do Júri não é suficientemente clara. É necessária maior clareza. Por exemplo:

“O jurado fica dispensado de se apresentar no local de trabalho durante o período em que estiver ao serviço do Tribunal.”

Por aqui se pode verificar que, independentemente de os jurados não irem ao Tribunal ao sábado, não podem ser convocados pelos patrões para trabalhar nesse dia. A formulação é vital e, como mencionámos a semana passada, os jurados são cidadãos comuns, não são especialistas em leis. A Ordenança do Júri é a única ferramenta em que o jurado pode confiar. É fundamental que o fraseamento deste Regulamento seja simples e directo. O Regulamento é o escudo que protege os direitos do jurado. Esta protecção visa garantir a prestação deste dever. Permite sobretudo que o jurado não sofra interferências do patrão e dos colegas durante a audiência do caso. Estas interferências poderiam, em última análise, influenciar a sua decisão em Tribunal.

Por outo lado, o termo “continuidade” pode ser problemático. Talvez seja difícil para um leigo compreender a natureza contínua de um processo jurídico. O caso de Donald Tsang é um bom exemplo. Se o juiz não tivesse levantado a questão da continuidade da prestação do júri durante o julgamento, não teria sido fácil para o cidadão comum compreender o conceito. A má interpretação desta Ordenança pode repetir-se vezes sem conta.

Mas não é só a Ordenança do Júri que implica a noção de continuidade.  Em certos crimes esta ideia também está presente. Por exemplo, se um criminoso esfaquear a vitima cinco vezes, estaremos a lidar com uma ou com cinco acusações de danos corporais? Podemos dar outro exemplo simples. Se durante um certo percurso, um condutor passar cinco sinais vermelhos, pratica uma ou cinco infracções de trânsito? É uma questão legal de difícil resposta.

Para contornar esta dificuldade, o ideal será criar uma Emenda à Ordenança do Júri.

Professor Associado do IPM
Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
14 Nov 2017

Selecção do júri (I)

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] antigo Chefe do Executivo de Hong Kong, Donald Tsang Yam-kuen, foi acusado de ter recebido da Wave Media, uma penthouse localizada na China continental e avaliada em 3,8 milhões de Hong Kong dólares (487.000 USD).  Em contrapartida, Donald Tsang tinha-se manifestado “favorável” à concessão da licença de difusão, requerida pela Wave Media, proprietária de uma rádio local, durante a sua chefia do Governo. Bill Wong Cho-bau, o maior accionista da Wave Media, tinha a casa em seu nome e pagou do seu bolso as obras de renovação. O caso vai ser ouvido no Supremo Tribunal de Hong Kong. O julgamento será presidido pelo juiz Andrew Chan Hing-wai e contará com a presença de um júri.

Segundo o sistema legal de Hong Kong, sempre que esteja em causa o julgamento de um caso de maior gravidade, será necessária a presença de júri no Tribunal. Esta é a principal diferença para o sistema jurídico de Macau, que não contempla a existência de júri. Consoante a gravidade do caso, assim serão requeridos sete, oito ou nove jurados. Os jurados são escolhidos entre os residentes de Hong Kong. O júri terá apenas de decidir se o réu é culpado ou inocente da acusação. Deverá ser constituído por pessoas comuns. Não devem ser especialistas em assuntos jurídicos, nem personalidades de destaque. Os jurados deverão ser maiores de 21anos e terão de ter o ensino secundário completo. A partir do momento em que um cidadão é seleccionado como jurado, tem obrigação de respeitar a convocatória. É um dever cívico. Os jurados estão dispensados de comparecer nos seus locais de trabalho, enquanto o julgamento estiver a decorrer. Neste período, cada jurado recebe do Governo uma diária de 830 Hong Kong dólares.

Actualmente, em Hong Kong, o réu tem o direito de escolher a língua que será usada durante o julgamento. Pode escolher entre o chinês e o inglês. Neste caso, como o advogado de acusação é originário do Reino Unido, será utilizado o inglês.

Segundo os noticiários, a selecção do júri para este julgamento tem sido muito criteriosa, embora já tenha havido alguns casos a salientar. Em primeiro lugar houve um homem que apelou ao direito de excepção. O homem justificou o apelo, afirmando:

“Não gosto de Donald Tsang.”

O juiz começou por rejeitar o apelo, alegando que o motivo não era suficientemente forte. Mas, depois de o advogado de defesa se ter oposto à inclusão do homem no júri, o juiz acabou por anuir.

O segundo caso assinalado envolveu uma mulher, rejeitada pelo juiz porque não conseguia pronunciar em inglês as palavras, “afirmo, solenemente e veredicto”. A rejeição baseada no mau inglês da potencial jurada, acaba por ser um motivo injusto para o réu.

A terceira pessoa a ser rejeitada foi uma jornalista. A bem da isenção noticiosa, o juiz considerou que a sua profissão era incompatível com esta função.

A quarta, e última rejeição, foi também baseada na má pronunciação do inglês. Desta feita, a senhora em questão, não conseguia pronunciar “almighty” (todo poderoso). O juiz voltou a manifestar a sua apreensão em relação às exclusões baseadas no mau domínio da língua inglesa. Teme que este factor possa afectar o resultado final.

Como se pode ver, o juiz tem sido muito cuidadoso no tratamento dos assuntos relacionados com este caso. Devido à proeminência social do réu, qualquer erro pode resultar numa anulação do julgamento e conduzir a críticas severas ao Tribunal.

No primeiro caso de exclusão, o juiz insistiu na permanência do convocado, e, inicialmente, não aceitou a “antipatia pelo réu” como motivo suficiente para o isentar das suas obrigações. Se qualquer pessoa pudesse alegar esse motivo para ser isentada destas funções, o sistema de jurados deixava de funcionar em Hong Kong. Só motivos muito mais fortes costumam ser aceites.

Mas a recusa do advogado de defesa em aceitar esta pessoa, deu motivo suficiente ao juiz para aceitar o apelo. Deve fazer-se tudo para evitar recursos e aumento das despesas de Tribunal.

No entanto, esta posição pode ser questionável. Será que existe uma boa razão para obrigar alguém a ser jurado, mesmo que o advogado de defesa insista que a “antipatia pelo réu” é motivo para que não possa ser aceite? Imagine-se que num caso futuro o advogado de defesa alega o mesmo que alegou o de Donald Tsang. A decisão vai ser a mesma. O círculo vicioso mantém-se e o problema nunca terá solução.

Outra questão que merece ser discutida é a adopção da língua usada em tribunal. Neste caso dois jurados foram excluídos por não falarem bem inglês. O juiz não tinha confiança do seu domínio da língua. Se os jurados não compreenderem bem inglês, não podem acompanhar o julgamento e não terão bases para tomar uma decisão justa. Por aqui se pode ver como a escolha da língua do julgamento pode ser problemática. Os advogados e o juiz são obrigados a dominar o inglês, mas os jurados não são. Será que o Governo deve acrescentar uma emenda à Ordenança dos Júris, a requer que os jurados falem inglês fluentemente? Se essa condição for exigida por lei, acabará por perder a utilidade se o julgamento for em chinês. A questão parece ser complicada.

Aplica-se o mesmo princípio a qualquer região ou país com um sistema legal bilíngue. Em que circunstâncias se deverá adoptar uma ou outra língua, é a primeira questão, se ambas as partes em confronto dominam a língua escolhida, é a outra. Num sistema legal bilíngue, os juízes e os advogados dominam as duas línguas. Contudo, esse pode não ser o caso das testemunhas e do réu. Nesses casos, poder-se-á recorrer à tradução para solucionar o problema? A sociedade deverá considerar todas estas questões. Se todos os documentos tiverem duas versões, será um desperdício de tempo e de dinheiro e, além disso, implicará mais demoras no julgamento. Será isso que todos nós queremos?

Como o caso de Donald Tsang é complicado, continuaremos a nossa análise na próxima semana. Até lá, despeço-me dos meus leitores.

Professor Associado do IPM
Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
7 Nov 2017