Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasOs cavaleiros do amor Todos os pretextos são bons para lembrar autores tão escondidos como Sampaio Bruno, não pela matéria do entendimento (uma vez que o tempo actual não é condizente com a matéria tratada) mas por serem necessários e urgentes no combate ao pensamento único interpretado por milhares de vozes. Falta tempo ao nosso tempo, e o tempo que sobra não tem tempo para aquilo que não foque temporariamente a raiz dos problemas comuns, que por acaso são cada vez mais incomuns, na medida em que se nos apresentam como irresolúveis. Mas há um tempo em que nada fala mais alto que os saberes não revelados – revelar – voltar a velar. Processos dialécticos de ínfima construção se abatem neste nosso real, e quando já cansados do asfalto das superfícies teremos então de entrar numa zona de «Encoberto» ou as muitas vozes plenas de justo raciocínio e objetividade podem enlouquecer-nos, ou fazer de um ser um parasita que se esforça para tirar de si o que de si mesmo desconhece. Sampaio Bruno, de seu nome José Pereira de Sampaio, é considerado o fundador da Filosofia Portuguesa. A sua origem maçónica, a sua filiação republicana foram factores determinantes para a construção da sua moral cívica. Redactor do Manifesto Republicano do malogrado 31 de Janeiro de 1891, onde em conjunto com Antero de Quental também elabora os estatutos da Liga Patriótica do Norte, Sampaio Bruno é sem dúvida uma incontornável personalidade a quem o exílio em Paris fragilizou. O desvio dos princípios racionalistas da sua juventude destronam-se subitamente, ou não tanto, talvez até gradualmente, e Bruno ensimesmado, incansável, desiludido com a República, solitário e de saber tamanho, torna-se um esotérico, uma natureza religiosa, estruturando elementos que faltavam para a construção de uma Filosofia (independentemente do complexo conceito que neste caso convém ter em atenção). Os múltiplos aspectos de que se reveste talvez não sejam consentâneos com a Filosofia em si, mas a Ibéria reescreve um seu modelo filosófico onde esta voz foi importante para deixar abertas as portas deste diálogo. É claro que Fernando Pessoa o seguiu e consultou durante toda a sua vida, chegando mesmo a enviar-lhe o primeiro original de «Orpheu» e, acaso os mistérios falem, nem as datas aqui devem ficar por contar: Sampaio Bruno nasceu no dia em que Pessoa morreu. Os Cavaleiros do Amor, o livro que se intitula também – Plano de um livro a fazer – é uma obra complexa e apaixonante, intrigante, talvez demasiado onírica e pejada de conhecimentos que necessitam um caminhar constante nos trilhos de outros saberes, mas é neste mês de Abril que ele ergue o seu dom de manifestação e cariz profético. Nas nossas vidas, vimo-los e saudámo-los, aconteceu esse belo acaso sem que soubéssemos que estava anunciado, e quem são e ao que vêm estes Cavaleiros? Numa contemplação esotérica de enunciação remota eles são os Capitães de Abril e a sua mensagem é esta na voz do autor: os tais libertos libertadores, libertando-se a si, libertando os seus irmãos da espécie, contribuem para a libertação universal. É uma mensagem colectiva que ganhou na marcha o efeito sonhado. São as aspectos arquetípicos que possibilitaram a manifestação. E é por isso que os ângulos de um acontecimento não se esgotam nos seus reais efeitos, pode-se festejar a forma rara deste anunciado por prismas outros e continuar a Festa muito para além do seu artefacto. Creio mesmo que faltou uma abordagem diferente desta etapa da vida portuguesa, e isso iria reflectir-se da pior maneira. Que seja Sampaio Bruno, o grande «Encoberto», a desvendar a marcha, talvez nem queira agora dizer nada pois que ela fala por si na fonte das coisas imperecíveis. E quando cansados do trilho das sociedades nos preparamos para andar à roda de nós mesmos no ciclo fechado que nos atavia de mortes póstumas pelo festejar rotativo de algo por interpretar, seria bom conhecer melhor os nossos Cavaleiros do Amor. Nada é de facto mais parecido; nem faltou a juventude, a beleza, o arrojo, e um Maia lembrando as festas da Primavera, as «Maias», os «Maias» … os Maios. No entender de tudo isto e indo à essência pura do registo que aqui nos traz, e sabendo-o, ao autor, um conhecedor de todas as Ordens e um seu herdeiro, diz assim: «Todavia, – quero ter a coragem de dizê-lo, consoante ainda rapaz me atrevi a dizê-lo a meu próprio pai -, em regra, e como princípio geral superior, não simpatizo com associações secretas, e não simpatizo com associações secretas porque é força da sua essência que elas façam prevalecer sobre a ideia da justiça para todos, a ideia da protecção para alguns; e, assim, sacrificam o direito profano à iniquidade do iniciado, com cuja causa o laço da misteriosa solidariedade se aperta. » Ficam assim os efeitos germinais que de longe vêm para um tempo comum agora aqui, e que olha para onde? Endogâmico, incapaz de estabelecer contacto com a frustrante derrocada da sua liberdade, conspirando por deficiência para o aniquilamento de si mesmo, pode no entanto abrir ainda todas as portas que Abril abriu! Tudo o que está escondido é protegido por um anjo que incólume andará por entre as gentes. É tempo de o encontrar.