José Duarte de Jesus, autor de “O outro lado da diplomacia (1960-2007)”: “Há conversas que revelam uma outra China”

A nova obra do embaixador português jubilado revela uma conversa com Li Peng, ex-primeiro ministro da China, sobre a tentativa do líder chinês de dialogar com os estudantes na praça Tiananmen. O livro de José Duarte de Jesus inclui conversas com algumas personagens relevantes na política do século XX, como Mário Soares e Samora Machel, e informações diplomáticas com base em documentos agora desclassificados. O livro foi apresentado no passado dia 21 de Abril no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa

Fotografia de Álvaro Isidoro, Global Imagens

 

 

Afirma que este não é um livro de memórias, reunindo situações e conversas que foi tendo ao longo da sua vida diplomática. Porquê esta partilha?

Tive sérias dúvidas em publicar o livro. Achei que tinha falta de conteúdo, que não era interessante, mas um grupo de pessoas incentivou-me [a publicar]. O livro tem coisas muito diversas, não só as personalidades que refiro, como as épocas e lugares em que essas conversas tiveram lugar, que vão desde o Norte de África a França ou à China. As partes mais substantivas dizem respeito a Moçambique e à China.

O que estas conversas e testemunhos dizem da sua carreira como diplomata?

Não é tanto sobre a minha carreira. Muitas das personalidades com quem falei foram importantes, como as mais antigas do período da guerra colonial e a Portugal. Há coisas que eu refiro passadas em França com o Mário Soares, por exemplo, sobre o fim da URSS, e que me pareceram interessantes acerca das posições sobre a queda da URSS, se se devia intervir [no processo] ou não. Depois, sobre África, as informações que eu incluo têm muito a ver com a política portuguesa no início dos processos de independência [das antigas colónias], nomeadamente de Moçambique, tal como conversas com Samora Machel ou matéria sobre a política de Jaime Gama [ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros]. Há ainda muita coisa que não se conhece. Tornei pública essa informação depois de ter recebido autorização para desclassificar muitos documentos que estavam no arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Sobre a China apresenta dois episódios interessantes.

Há conversas que revelam uma outra China, que não a China oficial. Uma delas foi uma conversa que tive com Li Peng sobre os acontecimentos de Tiananmen ou com a filha de Deng Xiaoping, pintora, Deng Ling, de quem cheguei a organizar uma exposição em Portugal. Foi interessante ver o que ela pensava sobre Mao Tse-tung e o posicionamento da China. Já em 2007, fui chefiar uma delegação da União Europeia (UE) à China para um diálogo sobre liberdade religiosa e direitos humanos. Foi uma viagem reveladora de uma série de coisas que passam um pouco à margem do que chamaria de “diplomacia oficial”.

Voltemos à conversa com Li Peng. Este disse-lhe que procurou dialogar com estudantes na praça de Tiananmen, mas uma estudante chegou a cuspir-lhe em cima.

Essa conversa nem foi directamente comigo, mas com Mário Soares. Eu estava ao lado dele. Foi num jantar aquando da visita oficial de Soares à China. O Mário Soares, sendo uma pessoa irreverente, resolveu falar da questão de Tiananmen, e ele [Li Peng] disse que a sua filha teve uma importância especial [face a Tiananmen], tendo referido que tentou dialogar com os manifestantes, que tinha ido à praça de Tiananmen e que lhe tinham cuspido na cara. Ele disse que não podia fazer nada e voltou para trás. Contou que a filha disse não querer mais que o seu pai se sujeitasse a uma situação dessas, que a envergonhava. Esta história pareceu-me importante para vermos a problemática por detrás da história de Tiananmen.

Esta conversa revela que Pequim também quis dialogar com os estudantes.

Há uma série de documentos que foram publicados, “Tiananmen Papers”, que mostram o que se passou e que ainda hoje muito está por saber, sobre os elementos que fomentaram a impossibilidade de entrar em diálogo, nomeadamente serviços secretos de outros países. Quem descreve isso muito bem é [Henry] Kissinger. Um grande amigo da China, mas um homem republicano, americano, que disse que o grande objectivo do país era manter a paz e o equilíbrio internamente e havia quem quisesse o contrário. Havia [em Tiananmen] um movimento espontâneo que foi largamente manipulado por forças com interesses estrangeiros. A China não tinha serviços de polícia, só tinha exército. Depois houve conversas com Portugal para arranjar uma polícia de cavalaria. Pensou-se que era melhor ter cavalos contra multidões do que tanques do exército.

O exército foi enviado para a praça Tiananmen porque não havia outra opção?

Exactamente. Mas não sei como ficaram esses diálogos com Portugal.

Esses interesses de que falou relacionam-se com a queda da URSS e com a tentativa de reduzir a influência do comunismo?

A ideia era provocar o Governo chinês. É difícil saber hoje qual era o movimento espontâneo e qual a manipulação que se estava a fazer por detrás. Os “Tiananmen Papers” revelam até diálogos que chegaram a existir com as autoridades de Pequim que receberam delegações de estudantes, com o diálogo a ser totalmente impossível por parte destes. Dava a ideia de uma vontade de provocar e não de dialogar.

Sobre a conversa com a filha de Deng Xiaoping, decorreu em 1994, já num outro período.

Falamos de Mao Tse-tung, na Revolução Cultural. Recordo-me de um exemplo que ela me deu, afirmando que houve excessos, mas que era importante lembrarmo-nos do primeiro imperador Han, que teve movimentos terríveis contra o Confucionismo. Ela dizia que ele era celebrado pelas coisas positivas, como a Muralha da China, por ter unificado a escrita, por ter permitido a criação de uma entidade própria, e não pelas coisas más. Estas conversas mostraram uma China diferente do que é vendido pelo Ocidente.

Já em 2007, deslocou-se novamente a Pequim, chefiando uma delegação da UE. Ficou surpreendido com o que viu?

Fiquei eu e parte da delegação, que era composta por pessoas de várias nacionalidades. No livro cito uma conversa com um monge budista sobre a liberdade religiosa, num mosteiro que não ficava muito longe de Pequim, que dá uma visão diferente das coisas. Também incluo uma conversa que tive com o então bispo de Pequim, que era presidente de um órgão da Assembleia Popular Nacional. Claro que a Igreja chinesa tem uma desobediência disciplinar em relação Vaticano, não é uma dissidência de fundo. Os bispos nomeados são reconhecidos pelo Vaticano, mas há uma disciplina diferente, mas isso hoje está a ser ultrapassado.

Também aqui em matéria de liberdade religiosa a China está à procura de diálogo?

Aposta no diálogo, absolutamente. Foi isso que retirei da conversa com o bispo de Pequim. É curiosa a ligação com Portugal, algo que eu desconhecia, através da escolha do primeiro nome português.

Sobre a Coreia do Norte, faz referências a Kim Jong Nam, presidente do Presidium da Assembleia Popular Suprema da Coreia do Norte, e com o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros.

Achei Kim Jong Nam um tipo extraordinário, que visitou Macau. Deu-me a ideia de ser um homem capaz de dialogar, embora a Coreia do Norte não tenha nada a ver com a China. Costumo dizer que não é um país mas um laboratório psíquico. As pessoas que encontramos na rua são automatizadas e psicologicamente condicionadas. Kim Jong Nam era um homem que podia ser aproveitado pelo Ocidente como um pólo de diálogo.

Essa visita de Kim Jong Nam a Macau, que resultados teve?

Durante bastante tempo havia um relacionamento de Macau com a Coreia do Norte que passava um pouco à margem de uma série de coisas. Hoje não sei se existe essa ligação, mas na altura era uma ligação comercial e não só. Havia uma série de coisas secretas que se passavam, chegou-se a verificar que havia notas falsas da Coreia impressas secretamente em Macau. Não eram ligações directas com o Governo de Macau e penso que depois as autoridades tentaram abolir isso.

África tem também uma posição muito central neste livro.

Samora Machel [ex-presidente de Moçambique] teve uma época muito ligada a Moscovo e depois teve uma nova época com o novo congresso da Frelimo em que isso foi ultrapassado. Em grande parte quem convenceu os EUA a ajudar o novo rumo da Frelimo foi o Jaime Gama, quando foi ministro. Samora Machel, em conversa comigo, levou-me à janela e disse-me para serem retirados os tanques soviéticos, para que nós fôssemos para lá. Houve uma série de processos secretos em que estive envolvido, pois os EUA forneciam dinheiro, através de nós [Portugal] secretamente. Fui incumbido de tratar dessa operação secreta. Abri uma conta na Suíça, o número dois da embaixada americana trazia-me um cheque ao meu gabinete e eu depositava na Suíça. Tudo num segredo total sem conhecimento do restante Ministério. O nosso embaixador na Suíça perguntava o que eu ia lá fazer, e eu dizia que ia numa outra missão. Jaime Gama dava-me ordens para essa transacção. Com esse dinheiro comprávamos armamento não letal para a Frelimo contra a Renamo, que estava feita com a África do Sul. Os EUA pagavam e isso era feito através de Portugal para ajudar a Frelimo contra a África do Sul.

3 Mai 2022

A Desordem e o Ódio

[dropcap]É[/dropcap] famosa a fúria de Samora Machel quando descobriu que afinal Mutimati Barnabé João (autor de “Eu O Povo”) fora uma invenção de António Quadros e não um guerrilheiro frelimista, morto em combate.

Percebe-se mas denota a ingenuidade do líder moçambicano, nesta matéria. Não se fazem bons poemas por ordem e graça do Espírito Santo. E a poesia não brota da sageza, da espontaneidade, ratice ou boa vontade, mas do domínio, técnico, e duma feliz dosagem entre as valências da memória e da imaginação, e quando a uma certa tradição retórica se conjuga a circunstância e a oportunidade. Ademais, por gracioso que seja António Aleixo não se compara a Fernando Pessoa.

Durante o regime socialista, como aconteceu nos outros países da mesma feição política, Moçambique foi habitado pelo dogma de que toda a gente era poeta ou artista. O que é confundir os iguais direitos que a todos cabe a montante com o que cada um faz disso a jusante.

Do mesmo modo que não me tornei cientista atómico nem escultor, a poesia não é para todos. Embora continue a haver muitos mais imitadores de poetas do que poetas.

O Cartier-Bresson fez dos mais notáveis enquadramentos da fotografia do século xx porque tinha atrás de si um curso de pintura – arte a qual abdicou, depois de ter interiorizado toda a história da disciplina. Não nasceu do nada aquele “vício natural” de enquadrar as fotos como se cristalizasse num clic a harmonia condensada de um universo.

Sim, o desejo é capaz de produzir objectos ou acções que transmutam o saber em novas formulações ou relações, mas para isso é necessário sublimar algo já existente, seja da ordem da sexualidade, duma crença ou de qualquer repertório técnico-discursivo.

Vale o mesmo para a rebeldia política, como movimento capilar, se por um lado fascina o apelo romântico da luta hoje é um crime abstrairmo-nos da história política dos últimos cem anos, pois esta destruiu a idade da inocência, e não foi só para os militantes.

Já estes caracterizam-se por presumirem uma unidade formal para a luta por via de uma transcendência – personificada no comité central do partido, ou nos dogmas da ideologia ou do nacionalismo, como realidades superiores. Depois, com mais ferocidade acrescida exercem as suas tarefas de organização e de exterminação. E os fins valem sempre os meios.

Sempre preferi os rebeldes, aquele que actualizam uma potência sem o filtro de uma filiação, que a uma necessidade visceral de justiça ou de mudança aliam uma causa concreta ou uma reavaliação dos valores. O que por vezes deu mudança de paradigmas, como em Maio de 68.

Mas isso assusta. Daí que Carvalho da Silva, o antigo dirigente sindical, tenha dito sobre os “coletes amarelos”:

“Não há democracia sem estruturas de mediação, os sindicatos, como muitas outras organizações, existem para representar interesses específicos, e a quem a sociedade pode responsabilizar; nestes movimentos inorgânicos perante a ausência de estruturas de mediação, isso torna-se uma bagunça e nega a democracia”.
É uma evidência que a democracia pode ser a primeira vítima do seu próprio sucesso mas esta será uma forma simplista de colocar as questões.

Como não simpatizar com os “coletes amarelos”?

Ainda que a sua força seja a sua fraqueza: a sua recusa de líderes e porta-vozes é eficaz (já foi) numa acção pontual, em prolongando-se pode cair na indistinção e na instrumentalização por grupos radicais.

Macron começou arrogantemente e afinal a sua inflexão neo-liberal dobrou como o junco diante da violência da realidade. Agora, dada a capilaridade da comunicação hoje em dia e os contágios que daí advêm é de perguntar se a reivindicação de que Macron abdique não terá já uma dedada da extrema-direita.

Em Portugal o movimento tem a sua primeira manifestação marcada para esta semana. O poder está apreensivo – foi de cem euros, a cedência de Macron no aumento do ordenado mínimo – e curiosamente a UGT e a CGTP já se colocaram de fora das reivindicações. Não querem estar “fora do sistema”, serem considerados arruaceiros.

Entretanto, o que mais desconcerta e ninguém quer pensar é a atmosfera de uma crispação latente que borbulha quer nas redes sociais, quer no descontrole com que num ápice os comentários dos leitores nos jornais se aproximam da arbitrariedade do ódio. É um sintoma acabrunhante.

O ódio toma conta das sociedades. Com profetas eleitos: Trump e Bolsonaro, que elevaram à legitimidade a arbitrariedade, o espírito arruaceiro e a impunidade. Tudo o que é arcaico, as pulsões mais retrógadas têm agora uma âncora para se assumirem sem vergonha.

A notícia mais simples e anódina é trampolim para exercícios de picardia e de desqualificação mútua entre os comentadores, o objecto da notícia não passa de um pretexto.

Na semana passada, António Lobo Antunes deu uma entrevista em que se afirmava a favor de uma só nação ibérica. Com raras excepções não se trocaram argumentos nos comentários que se lhe seguiram, não se discutiu uma ideia; antes se amontoaram as notas denegridoras sobre o escritor, as sentenças e a condenação sem freio que roça o ódio.

Todavia, há vinte anos, se um Virgílio Ferreira, um Eduardo Lourenço, um Prado Coelho, uma Agustina ou o Abelaira, manifestavam uma ideia considerada controversa havia em primeiro lugar uma suspensão da opinião. Se aquela criatura dizia tal, ponderava-se, porque a autoridade de milhares de páginas escritas por aquele autor pesava.

Agora há uma manifesta falta de humildade e a sentença de um mecânico de automóveis, de um marceneiro, de um polícia, de uma empregada doméstica, de um trolha, de um enfermeiro, parece equivaler-se à de um escritor consagrado. Também as democracias liberais caíram na distorção do socialismo e confundem o justo direito à igualdade a montante com a propriedade da opinião a jusante. Todos pensadores de primeira água, todos são poetas e artistas.

E entretanto esconde-se um fascista não declarado entre cada três comentadores.

20 Dez 2018