Ricardo Ben-Oliel (continuação)

Como é que um judeu de família da Europa central nasce em Cabo Verde e cresce e forma-se em Portugal?

Tudo por força do acaso . Minha mãe, nascida na Alemanha, encontrava-se em Milão, na companhia da irmã e do cunhado, quando Mussolini deu aos judeus ordem de expulsão. Teriam de abandonar a Itália dentro de um mês, sob pena de repatriamento. Por sorte, um familiar deles que à data se encontrava em  Cabo Verde, conseguiu obter-lhes licença de entrada. Meu pai, também judeu, que tinha negócios em Cabo Verde, encontrava-se no porto do Mindelo quando o navio em que minha mãe viajava aí chegou. Ainda por força do acaso, conheceram-se logo após o desembarque. Meses  depois estavam casados. Passados anos, já meus pais tinham três filhos, e por razões de escolaridade decidem mudar-se para Lisboa. Aí estudei desde a primária até ao final da licenciatura em direito.

O que te levou a deixar Portugal e passar a viver em Israel?

Esta é uma das mais  complexas  respostas a dar. E que respeita à mais  difícil decisão da minha vida. Não fui para Israel por razões económicas ou políticas, que são as que geralmente dão origem à  emigração. A razão foi ideológica. Corpo aqui (Lisboa), espírito lá (Israel), até que decidi reencontrar-me, partindo. Foi em Dezembro de 1973. Sabes que estou a escrever uma novela em que tento responder a esta tua pergunta?

Isso é uma boa notícia! A propósito do que me respondes, de não haver uma razão politica na tua mudança para Israel, qual era a relação do Estado Novo com os judeus?

O Estado Novo, é sabido, sempre teve uma relação ambígua para com muitos. Até  para com a  Igreja. Não admira que, em certa medida, o mesmo tenha sucedido com os judeus. Mas há que distinguir entre dois períodos diferentes: até ao final da Guerra e o pós-guerra. Grosso modo, diria que na primeira fase, apesar de sérios ziguezagues e mesmo graves deslizes, houve uma relação de cooperação. Judeus chegaram de comboio dos países ocupados. As autoridades criaram vários locais de acolhimento. Lisboa torna-se um porto de passagem para milhares que buscam outras bandas. A minha própria família materna encontra um abrigo em Portugal. Estes factos não podem de modo algum ser ignorados. Terminado o conflito, o relacionamento é de franco, bom entendimento. Eu conheci de perto a comunidade israelita de Lisboa, na década de sessenta e princípios dos anos setenta, nela também tive certas funções directivas. O presidente da comunidade,  Prof. Moisés Amzalak, que veio a ser presidente da Academia das Ciências, foi íntimo de Salazar. Contou-me que Salazar chegou a consultá-lo para efeito de nomeação de ministros. O Prof. Kurt Jacobson chegou a vice-reitor da Universidade de Lisboa. O doutor Samuel Ruah, se bem me recordo, foi médico de Salazar. Tratava-se de uma pequena comunidade, julgo que não teria mais de mil membros, onde vários se distinguiram no mundo da medicina, do direito, da economia. Intramuros não se falava de política. Nem bem, nem mal. Tal não impediu que só em 1977 tenham sido estabelecidas relações diplomáticas a nível de embaixada com Israel, e que só em 1991 venha a ser instalada a primeira embaixada de Portugal em Telavive. Aí as considerações já eram completamente outras, e Portugal diligenciou em não afectar os seus interesses no mundo árabe.

E como foi todo o processo de adaptação a Israel, à língua, à escrita, pois tornaste-te um académico respeitado nesse país?

Vê que colocas a questão em termos de passado , como se o meu processo de adaptação tivesse já terminado. Não é assim. Ele está ainda em curso, e assim será. Apesar dos meus quarenta e tal anos em Israel, e de me ter tornado um académico conhecido como  catedrático de direito, tenho ainda muito a aprender. A aprendizagem da língua, da escrita – e isto apesar de ter muitíssimas centenas de páginas publicadas em hebraico – da cultura, dos costumes das várias etnias que habitam o país, exigem um trabalho constante, perseverante. Sou um imigrante, terei de aceitar a minha função de ponte entre o passado e as gerações futuras. Os meus filhos já estarão integrados. Os meus netos ainda melhor.

Quando começaste a escrever?

Tinha os meus doze, treze anos. Fazia-o um tanto às escondidas. Escrevia histórias curtas que às vezes dava à minha irmã para ler. Nunca publiquei o que quer que fosse nos jornais juvenis à data existentes.

E conhecias a tradição literária judaica ou somente a ocidental?

No  período que precedeu a aliá (emigração) a minha leitura visou essencialmente  a compreensão da Torá, do Talmud, da Kabalá. Interessava-me captar o máximo sobre a identidade judaica, a Weltanschauung do povo judeu. No campo estritamente literário, certamente que me eram muito familiares os nomes de Chaim Bialik, Shmuel Agnon, Amos  Oz, entre outros. Mas não nego que muito aprendi sobre a particular sensibilidade e olhar crítico judaico  lendo escritores judeus ocidentais, tais como Stefan Zweig, Isaac Babel, Saul Bellow, Hannah Arendt , Elie Wiesel , Salinger, Philip Roth, e tantos  mais, sobretudo o grande Kafka.

17 Jul 2017

Ricardo Ben-Oliel

(CONTISTA QUE VIVE HÁ QUARENTA ANOS EM ISRAEL) E O SEU LIVRO O QUARTO TRANCADO ONDE NEM A MORTE ENTRAVA (Segunda parte)

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]orque narrar não é apenas uma necessidade; narrar é fazer viver o vivido, fazer-nos viver de novo. Quem não narra não ressuscita. E quanto da narração não passa de vida parada! Mas não há só relato, sedução neste conto, como já víramos antes, há também a vida vivida dos outros:

Entretanto, já se fora o casal de jovens que se sentara à nossa frente. Ela saracoteando-se e a sacudir contra o azul do céu a bela cabeleira dourada; ele a perscrutar insistentemente algo no aparelhozito com que guardara uns tantos retalhos do universo. // Pouco após, veio sentar-se próximo uma senhora idosa e anafada, que passeava uma criança de berço, bem resmungona. Uma oportuna chucha enfiada a tempo restabeleceu a serenidade ameaçada.

A narrativa e mais uma interrupção por novos companheiros de mesa, até que, já levantados, já afastados do Cristo-Rei, no final do conto, Leo conta porque se riu, no início. De um simples riso à sua explicação, percorremos algumas décadas, dois continentes e alguns modos do humano se comportar uns com os outros nos dias de hoje, porque o outro – e já o escritor Mário de Carvalho nos tinha alertado na apresentação do primeiro livro de Ricardo Ben-Oliol, para essa dimensão humana, a compreensão do outro, que no seu entender domina todo o primeiro livro, em diversas tonalidades – é uma cidade onde se vive.

Entretanto, veio sentar-se na esplanada, perto de nós, um casal de velhotes, a acompanhar dois caniches, mimados e ruidosos. A imporem a sua presença. A fazerem-nos ver que havia quem mais tivesse direito a fruir um belo poente de Agosto.

Em “Pe-ter, Pe-ter, On-de Es-tás-as” inicia-se, e até ao fim do livro, os contos vindos desse pais singular: Israel. Os contos de Israel fazem-nos cair num ambiente que nos é estranho. Os campos de concentração estão presentes ao dia a dia das pessoas. São os sobreviventes ou familiares deles que referem as suas experiências, do mesmo modo que nos nossos cafés escutamos as aventuras amorosas passadas, de alguém idoso, ou uma ou outra arruaça mais atrevida. Percebe-se, pelo livro, que o sofrimento é uma crosta que cobre o país. Assim como a constante preocupação, apesar da habituação, essa característica quase essencial do humano, como o autor escreve, referindo-se a Shlomi, à pagina 68: “cidade sempre em perigo e que se habituara a viver como tal”. Por outro lado, há em Israel mais uma guerra que nos escapa a nós, portugueses de quase mil anos em todo o território, a diferença entre as cidades históricas, como Jerusalém e as cidades novas, como Telavive. Leia-se:

Telavive é a cidade dos escritórios, das grandes companhias. É a cidade do futuro, ao menos é quanto parece. Tem o mar, as praias, o Bauhaus. Até aí, tudo certo. Mas falta-lhe…

– Falta-lhe o quê, quererás dizer-me?

– Espaço e história!

Mas, e ainda neste mesmo conto, ficamos frente a uma dos mais estranhos e misteriosos sentimentos humanos: a guerra particular. Mais do que a guerra, é a quebra da amizade, de uma amizade que até aí parecia tão sólida quanto a Tora e de repente se rasga como papel higiénico, porque é mesmo uma marca de papel higiénico que conduz a isso. Neste conto magistral, Alan e Noa, Hana e Luna – A história De Uma Morada, em que um jovem casal que se muda para uma cidade do deserto testemunha a transformação da amizade de duas mulheres, vizinhas no mesmo prédio, em uma guerra sem piedade. E porquê? Por um rolo de papel higiénico. Pela compra de uma marca em detrimento de outra por parte de Luna sem partilhar essa informação com Hana. Informações que até aí, onde comprar mais barato e quais os produtos mais baratos, eram sempre partilhados entre elas, até ao trágico dia em que Hana se dá conta de que Luna passara a comprar Xelax ao invés de Alex, como sempre ambas fizeram, sentido nisso uma violenta traição, uma invasão da terra prometida. Leia-se à página 95:

Mal abro a porta, dou com o Alex e o Xelax, os dois estendidos pela casa fora. Dobrados e redobrados. O Xelax ganhava, era francamente maior. E as duas de joelhos, a apalparem-nos, demoradamente, a ver qual dos dois o mais macio. E o Xelax, uma vez mais, a atestar a vantagem sobre o rival. Hana, assanhada, nunca a tinha visto assim. A insistir, sempre: «E não me dizias nada, Luna! Lô, lô, Luna, lô, lô, Luna! // Noa a reviver, a recriar, zombeteira, o dizer ressabiado de Hana: «Eu, que nunca deixei de te avisar onde comprar o tomate mais barato, Luna! E a alface, e a farinha, e o mel! Quantas vezes te disse que não fosses à makolet do Arik, que vende tudo mais caro do que o Dov. Queres um canalizador, uma sanita nova, aconselho-te a que chames o Shimon, e não o Shmulik. Precisas de consertar o boiler, que procures o Kobi. Tens um estore empanado, diz ao Fadi, que é árabe e não é careiro. O tal que me pintou a casa, e até ficou bem. Mesmo quando tiveste problemas de gengivas, Luna, lá foi a pobre da Hana buscar-te à farmácia o melhor gel, e o mais em conta. E tu descobres uma coisa destas, e fechas-te em copas! Não fora eu ir lá dentro, e ficaria, sem saber que, afinal, estava a esbanjar, sem necessidade alguma. Só me faltava esta de andar a desbaratar dinheiro em papel higiénico!»

Este início de guerra entre duas amigas, que diariamente se entre ajudavam, neste preciso contexto de uma pequena cidade de Israel, não pode deixar de nos fazer pensar de como não existir o conflito entre os irmãos judeus e muçulmanos. Irmãos, sim, pois, e como é vivido e sabido em Israel, há muito mais similaridades entre o judaísmo e o islamismo do que entre qualquer uma destas religiões e o cristianismo, em qualquer das suas variantes. E, como o próprio narrador escreve páginas adiante:

Afinal, que frágil que é a teia de amizade a unir as pessoas. Às tantas, uma palavra, a mais ou a menos, um gesto mal esboçado, um qualquer esquecimento, quem sabe se propositado, ou apenas negligente, é quanto basta para tudo quebrar. Mas terá de ser assim? Não deverão a memória, o sentimento, e neste caso, até o apoio, a assistência, prevalecer sobre qualquer um desses incidentes? Às vezes, até dá a ideia de que há quem esteja à coca de uma razão, para logo desencadear a guerra.

Se é verdade que este conto e a fragilidade das amizades nos conduzem, por forças da origem da narrativa, a pensar no conflito do Médio Oriente em particular e nos conflitos ao redor do planeta em geral, não é menos verdade que neste caso também nos faz pensar em nós portugueses, e na aparente facilidade com que cortamos relações uns com os outros, levando-nos a pensar que talvez haja um modo de ser mediterrânico ao qual todos nós pertencemos.

Da guerra do papel higiénico à impossibilidade da paz em Israel vai um conto. E, nesse conto seguinte, é um ex-aluno do narrador, e também ex-militar e ex-assaltante, que nos diz isto:

Todavia, se para uns a morte é um rito, uma memória, um símbolo, para nós, incapazes ou impossibilitados de construir a paz, a morte tornou-se uma vivência, uma vivência diária, uma vivência arrastada a toda a hora. E o que é pior? Fala-lhe um ex-soldado, que em circunstâncias duras se viu forçado a abater outros, deixando-lhes os corpos torcidos, os crânios esfacelados. Caídos ao mero pressionar de uma falangeta. Será esse o caminho para se alcançar a tão propagada concórdia, esse repisado shalom, dito e redito a cada instante? Mas se essa não é a via, professor, então também lhe digo que outra não haverá. A tão ansiada paz é inatingível. Nenhuma das partes no conflito se revela pronta a contemporizar, a correr os riscos necessários para a celebrar. Nenhuma delas está apta a prescindir de exigências, de condições, que desde logo inviabilizam qualquer solução. Assim sendo, só nos resta a alternativa de continuarmos a nossa existência a braços com a morte.

No último conto do livro, Balada Para Yair, o menor dos contos do livro, somos atingidos violentamente pela redemoinho da primeira frase: “Sabia que vinhas hoje, pai.” E o tempo todo de uma criança sem o pai cai-nos em cima neste começo de conto: Sabia que vinha hoje, pai.

Neste último conto a morte de uma criança, Yair, filho do narrador, irmã da menina que nos atira à cara a frase com que começa o conto, é ligada a todas as atrocidades humanas, a Auschwitz Birkenau, o maior terror da história humana, onde se chegou a exterminar – infelizmente é este o termo – dez mil judeus por dia, no auge da barbárie. Porque para um judeu, matar um homem é destruir o mundo. E veja-se como o autor liga estes acontecimentos aparentemente desconexos: “Uma mina, e o jipe que saltou. E com ele Yair, pai. Como é possível, ainda há dias, e na semana passada, e no último Verão, e quando há uns anos fomos os três a Varsóvia, a Auschwitz, depois a marcha a Birkenau…

Esta tristeza partilhada pelo pai e pela filha, acentua-se para nós com esta frase, em interrogação retórica, que surge como um muro entre os humanos: “Porque será que as pessoas tão bem se entendem, quando nada dizem?” E para terminar, deixo-vos com mais uma passagem do último conto do livro:

Que final de tarde, que pesadelo, eu a ouvir as sirenes e a saber-vos, os dois, sós.

– Julgo que foi das poucas vezes em que vi Yair chorar. Mas sem tirar a máscara [de gás do rosto], para que eu não visse. Quando a guerra terminou, Yair e eu, de novo, a sentirmos a tua falta. Voltavas para casa sempre tão tarde! Faz hoje um ano mais, pai.

11 Jul 2017