Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasRegressar [dropcap]O[/dropcap]lhem, amigos. Não sei se acontece convosco mas eu aproveito o balanço e deixo a confissão: o que mais gosto das férias é do regresso. A sério. Aliás, para ser ainda mais sincero, já que aqui ninguém nos ouve: o que eu gosto mais de todas as partidas, de todas as viagens, afectivas ou geográficas, colectivas ou individuais é sempre o mesmo: o regresso. Como agora. Já me fazia falta voltar a estas palavras que interrompi por vontade própria e necessidade. Mas a sua ausência não foi nem nunca será tão gratificante como o regressar à escrita. Assim com tudo, desde miúdo. As férias escolares, quando era criança, prolongavam-se por uma eternidade em que cabiam muitas aventuras e descobertas. Mas chegava sempre aquela altura terrível para os meus pais em que me lamentava pelos cantos, suspirando com uma frase cara aos supermercados: o regresso às aulas. Na Irlanda – um país que amo e o que mais visitei – cheguei a escrever para casa: “Não volto”. Oh, ilusão juvenil! Claro que voltei – e o ter voltado foi o melhor de ter partido, até porque me deu a infinita possibilidade de regressar. Gosto de regressar, sim. Gosto de me confortar numa ordem doce das coisas: um céu conhecido, um gesto previsível, uma rua já palmilhada. Não me escuso ao desconhecido – bom, não é verdade, cada vez tenho menos paciência, mas adiante – mas não sei viver sem o familiar. O meu filósofo político de referência, Michael Oakeshott, diagnosticou há muito esta disposição natural num célebre ensaio, On Being Conservative. Mas na verdade a razão funda desta disposição é – como qualquer conhecedor do conservadorismo britânico saberá – o medo da perda. E para isto não é necessário aderir a uma mundividência específica: começa e acaba em ser humano. O que mais me comove, então, é o voltar não a algo que se abandonou mas a algo que nunca se deixou. E reconhecê-lo, e comprazer-se nisso mesmo. O regresso é um combate ao tempo. É uma espécie de reclamação de imortalidade que só terá lugar se depois de partirmos deixarmos qualquer coisa a que alguém possa regressar. O poeta Shelley, por exemplo, sabia-o : « A mudança é certa», escreveu. «A paz é seguida por distúrbios; a partida de homens maus é seguida pelo seu regresso. Tais recorrências não deveriam constituir ocasiões para tristeza mas sim realidades para produzir conhecimento, para que pelo meio possamos ser felizes. » O regresso é a razão da partida e de todas as pausas. As férias, com a utopia do descanso e de “pormos em dia” tudo o que não tivemos coragem de fazer antes, são uma falácia. Não há férias da vida.
João Luz VozesO Retornado [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]atéria, energia, pessoas e corpos celestes seguem um percurso que os impele a volver. Seja de uma forma cíclica ou esporádica, o retorno é quase uma inevitabilidade de tudo o que é dinâmico, de tudo o que vive. Regressar a Portugal pela primeira vez foi uma das viagens mais densas em termos emocionais e psicológicos que fiz, como se tivesse condensado um ano em três semanas de nostalgia fresca. Macau adicionou um factor de distorção temporal e significado à minha vida, ao ponto de achar ser possível ter saudades do que nunca vi e de sentir familiaridade esvair-se de uma ferida conhecida. Rumei para a Ásia há pouco tempo, mas parece que sempre estive cá. Por outro lado, o retorno a Lisboa trouxe reflexões novas. Talvez seja pensamento em excesso, algo curável com um trabalho braçal que não implique reflexão. O facto é que cidade onde morei nas últimas duas décadas continuava lá, alva e suja em simultâneo, paradoxal como sempre. O Largo da Severa, o Vale do Silêncio, a Almirante Reis, o Tejo a anunciar a margem sul. Mesmo o uterino Alentejo adquiriu um travo de irrealismo banhado a luz intensa. Pode uma pessoa perder-se em lugares que conhece? Onde está o meu torrão, a minha quota-parte de terra? Nenhum pedaço de planeta é meu, porém, até a Marte me arrogo. Sou um “cosmofundiário”, tudo me pertence em parceria com todos, ao mesmo tempo que não sou dono de absolutamente nada. Vistas bem as coisas, vivemos todos este socialismo de alma territorial alargado às estrelas, tornando as fronteiras em conceitos aberrantes e contranatura, imbecilidades que ignoram a força do grande íman que nos puxa e repele. Portugal é agora um sonho, uma terra quimérica onde a realidade se vestiu com trajes oníricos, uma colectânea de déjà-vus com origem definida, onde cada novo detalhe se agiganta e se transforma num factor de mudança de paradigmas. Aquilo que sempre conheci, as ruas que parecem ter nascido comigo, a língua falada com rispidez, o queixume que condimenta a psique nacional, tudo se tornou exótico. No fundo todos os pormenores que conheço intimamente tornaram-me num estrangeiro na minha própria casa. O Oriente tem essa capacidade de transformar o que é familiar e íntimo numa projecção de sonho, como se estivéssemos a passear por uma outra vida dirigida por Wong Kar-wai. Por outro lado, a estranheza enigmática e incompreensível desta terra transmite um conforto indefinível, excepto talvez pela mais inspirada poesia. A lógica de pertença esgueira-se para um local onde as pessoas são a única verdadeira âncora, indiferentes a tempo e espaço, cristalizando gargalhadas, banalidades e coisas profundas em momentos eternos. Agora regresso para Macau, seguindo como um louco a agulha que aponta para Oriente e cumprindo o básico desígnio de regressar. Reconheço a fatal realidade e obedeço ao imperativo das leis naturais que regem coisas, bichos e o mundo invisível da física e química. É assim que funcionamos. Vamos, até onde houver mar, para onde o vento nos levar, ir é o nosso destino, ir para regressar. Vir traz o clímax de nos fazermos de novo, da reconstrução orgásmica noutra longitude, num meridiano sonhado de olhos abertos. Quando começou este vaivém? Talvez quando o Universo iniciou a grande expansão, quando da energia se fez matéria. Quando uma estrela se esgota e colapsa, explode e cria energia, dispersa matéria, vai e retorna a aglomerar-se numa valsa desordenada de detritos do passado que formam o futuro. Assim opera o espírito humano, com revoluções e contra-revoluções, acção e reacção, buscando equilíbrio nas antípodas, tudo polarizando para encontrar o cerne, o ponto óptimo, a paz que alvejamos. Vivemos para morrer da mesma forma que partimos para regressar.