O futuro da memória (II)

“A people without the knowledge of their past history, origin and culture is like a tree without roots. Our greatest glory is not in never falling, but in rising every time we fall.”

Marcus Garvey

(Continuação)

Quando nos aproximamos do passado, temos de ser capazes de contextualizar, descontextualizar e ressubstancializar como disse Knut Wolfgang Nörr. Isto significa que devemos abordar o nosso objecto de estudo situando-o no contexto em que se desenvolveram determinadas instituições e regras, tendo sempre em conta que isso é feito com as nossas próprias categorias, que influenciam inevitavelmente a forma como nos relacionamos e reconstruímos o passado. A Europa ainda que tendo um passado racista e patriarcal como o dos Estados Unidos, tem um problema menos generalizado com as minorias e com a importância de clarificar o passado com um enfoque constante na inclusão. Mas também aqui existe uma forte discriminação e não é de excluir que, no futuro, por exemplo, as associações que defendem os direitos das pessoas homossexuais ou transexuais exijam reformas dos programas de estudo se tiverem como objecto institutos ou regras (ou temas) que possam ser atribuídos a homens heterossexuais educados numa cultura de discriminação.

O mesmo se pode dizer dos imigrantes. Uma actividade de investigação que, de certa forma, se aproxima da abordagem em questão tem sido levada a cabo, por exemplo, por mulheres historiadoras que sem qualquer intenção de reescrever o passado relêem, no entanto, certos fenómenos da Antiguidade, da Idade Média e da Idade Moderna, destacando a importância das figuras femininas nos mesmos (refere-se aqui à actividade meritória que as sociedades europeias de historiadores estão a levar a cabo neste domínio). É possível estudar a história independentemente da filologia Não podemos estudá-la de uma forma inovadora sem a filologia, mas podemos ensiná-la bem. É de recordar o livro de Moses Finley, publicado há mais de quarenta anos, intitulado “The World of Odysseus”. Nesse texto, Finley que era um americano que fugiu dos Estados Unidos em tempos de caça às bruxas relata claramente alguns aspectos centrais da herança grega e do que a Grécia deu ao mundo.

É simples, mas consegue captar os pontos essenciais. Por isso, é possível ensinar história sem filosofia ou filologia, mas não se pode prescindir delas quando se faz investigação. No entanto, se, como se está a fazer, se suprimirem as especialidades a torto e a direito, cortam-se as bases do conhecimento e, a partir da universidade, a crise alastra a todo o sistema. No entanto, há algumas questões a colocar. Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que o apagamento da história não é algo que tenha começado hoje. Pensemos, por exemplo, em “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith. Nesse texto, Smith nunca se refere à colossal mudança nas relações de poder económico entre as Índias e a Grã-Bretanha, tornada possível pelas acções político-militares dos britânicos. Pelo contrário, ao tentar enterrar o mercantilismo, o filósofo escocês esconde como, de facto, o poder económico da Inglaterra derivou precisamente de séculos de práticas mercantilistas e colonialistas, tentando fazer passar a imagem de um comércio pacífico e doce. Este é um exemplo perfeito da supressão da história.

No entanto, se olharmos para a cultura canónica, verificamos que, a par deste apagamento, há também uma tentativa de endurecer a história. Um branco filho da escravatura ficará para sempre marcado, tal como os negros, quando no passado eram considerados ontologicamente inferiores. A cultura do cancelamento, portanto, reproduz exactamente os mecanismos de divisão entre os seres humanos que o liberalismo tinha tentado atenuar. O problema é que estamos a perder o “melhor” uso da história. Pensemos em como se tentou reconstruir o passado com base em fontes e documentos. Claro que foi uma voz fraca, substituída por uma retórica nacionalista que surgiu muito antes do fascismo e que escondeu toda uma parte da história. Nos Palácios da Justiça, para dar um exemplo, não há uma única estátua de um jurista médio. São todos romanos na maioria dos países da familía romano-germânica de direitos, apesar de terem existido grandes juristas na Idade Média. Este é o preço que pagamos sempre que a história é utilizada por algum motivo.

Temos de estar conscientes deste facto. Mas deitar fora o bebé com a água do banho não é a solução. O risco é que cada um faça a sua própria narrativa, como já teorizavam os pós-modernistas franceses nos anos de 1980. Mas isso, como diria Georg Lukács, é a destruição da razão. Têm-se a impressão de que vivemos actualmente num mundo povoado por “pessoas que compram”, ou seja, por pessoas que parecem ser atraídas pela catástrofe. A questão, então, é saber como não a atingir. A tarefa, deste ponto de vista, deveria ser a de promover uma consciência crítica. Se o risco é a irrupção da anti-história, então não se trata apenas de promover conhecimentos alternativos ou diferentes. Não se trata de opor ao tecnicismo economicista um pensamento igual e oposto, mas de estimular a reflexão crítica. Deste ponto de vista, os clássicos são uma mina sem fim. E não apenas os da filosofia. Também a literatura é um “vademecum” para compreender o mundo. Para compreender o pensamento político ocidental indo às suas raízes, por exemplo, seria necessário ler a “Teogonia” de Hesíodo.

Educar para o pensamento crítico significa, portanto, antes de mais, estimular o interesse pela redescoberta e pelo cultivo das raízes. Quem trabalha nas escolas e nas universidades deve fazer isso antes de mais nada. Para isso, as universidades e os académicos têm de ser compreensíveis. Há uma coisa que deve ser recuperada da cultura anglo-saxónica que é a capacidade de fazer uma divulgação elevada e excelente. Temos de ser capazes de entusiasmar as pessoas com temas complexos, sem cair no banal. Não devemos fazer como a Igreja, que continuou a falar latim mesmo quando o latim já não era compreendido por ninguém. O problema da popularização é fundamental. Aqueles que estudam a actualidade e a antiguidade a um nível elevado devem colocar o problema de tornar os seus conhecimentos acessíveis também aos leigos. Os historiadores do direito grego e romano, que publicam obras de grande divulgação há mais de quarenta anos, fazem um grande esforço neste domínio e garantem o acesso à cultura clássica (ainda que de forma simplificada) mesmo a pessoas que dela estão afastadas (engenheiros, médicos, mas também membros da classe média).

Alguns estão a trabalhar (ainda que não seja a sua área de estudo principal) sobre algumas figuras femininas da Antiguidade, pois ao aprofundar o papel de mulheres que as fontes descrevem como particularmente activas do ponto de vista económico ou cultural (pessoas que viveram entre o século I a.C., especialmente no período ciceroniano, e o século I d.C.), tentam fazê-lo numa linguagem simples, não enigmática ou excessivamente hipotética, e em alguns casos apresentando os textos em tradução (talvez referindo as citações latinas ou gregas numa nota de rodapé). Isto é feito para tornar acessíveis, em primeiro lugar, aos seus alunos e, depois, esperemos, a um público mais vasto, temas complexos, mas que também nos preocupam intensamente no presente. É necessário, que os historiadores coloquem este problema. E encontrar novas formas de o enfrentar. O presente é o reino do particular e não permite qualquer generalização. É apenas a nossa memória individual que nos permite generalizar, oferecendo-nos assim a possibilidade de nos projectarmos no futuro.

Só assim podemos aprender regras que não são prescritivas, mas que se assemelham mais a padrões interprescritivos. Ora, se isto é verdade a nível individual, também pode ser verdade a nível colectivo. Os clássicos são exactamente o que sabemos do nosso passado, da nossa memória. E por isso o estudo dos clássicos deve ser direccionado para o futuro. Eles devem ser a chave que nos permite generalizar e orientarmo-nos para o futuro. Referimos que os textos antigos deveriam ser “vademecum” para a nossa compreensão do mundo. Do nosso ponto de vista, devem ser, antes de mais, sementes a partir das quais essa compreensão pode crescer. O problema é que, tal como, de um ponto de vista sociológico, a classe média está a desaparecer, também, a nível intelectual, o leitor médio está a desaparecer, preso entre o ignorante e o especialista. É por isso que é difícil fazer uma boa divulgação. Para recuperar o atraso, é preciso ir o mais longe possível nas escolas. É aí que a semente deve ser plantada. Depois é demasiado tarde.

3 Out 2024

Quatro clássicos, quatro espelhos 看中国人的四面镜子

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s quatro clássicos chineses são: O Sonho da Câmara Vermelha《红楼梦, Viagem ao Ocidente 《西游记》, Margem das Águas 《水浒传》 e Romance dos Três Reinos 《三国演义》。

Quatro romances. Quatro espelhos de uma realidade chinesa genuína e verdadeira.

O Sonho da Câmara Vermelha (publicado em1791) representa o bom gosto e a elegância. Através da poesia, da música e das palavras, a cultura clássica chinesa é apresentada nos seus mais variados aspectos: arquitectura, gastronomia, culto dos jardins e arte. Quem se considerasse um literato haveria de discutir O Sonho da Câmara Vermelha, o que faria dele um Hongist. O Presidente Mao Tsé Tung foi um Hongist.

Há quem pense que a China poderia continuar a existir sem a Grande Muralha, mas não sem O Sonho da Câmara Vermelha.

Margem das Águas (compilado no séc. XIV) representa o culto chinês das boas maneiras, especialmente da virtude. Façamos o que deve ser feito. A ajuda deve ir para onde é precisa. A virtude é o pilar espiritual da cultura chinesa. Nenhum dos heróis de Margem das Águas dá importância aos bens materiais. Não podem ser comprados ou tentados, nem mesmo por belas mulheres. Os heróis chineses têm um déficit de genes românticos.

Viagem ao Ocidente (publicado no séc. XVI) conta as aventuras de um monge budista e dos seus discípulos, mas não tem nada a ver com o Budismo. O sumo sacerdote do templo budista instiga as nossas personagens para uma corrida ao ouro, como faria qualquer “pecador” ganancioso e tomado de apetites vorazes.  Não respeita o Taoísmo pois considera os monges taoistas desumanos e capazes de provocar o mal.

Os chineses rejeitam todas as formas de religião. As convicções religiosas devem assumir forma palpável e trazer vantagens materiais. O romance também apresenta uma visão crítica, se não cínica, das qualidades chinesas; quem é (ou não) competente para o quê.

Romance dos Três Reinos (publicado em 1522) fala-nos da China como nação unificada. O romance ignora praticamente os acontecimentos do dia a dia, as relações familiares ou as questões éticas. O autor estava centrado na governação, ou seja, na sobrevivência da China como nação. A China acima de todas as coisas. Eu diria que, “aspirar pela paz e pela unidade” é uma componente essencial da psicologia chinesa, inscrita no ADN deste povo. A “Política de Uma Só China” não é uma invenção dos comunistas.

22 Fev 2017