Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasMemória de um local dilecto [dropcap]T[/dropcap]chaikovsky compôs a obra Souvenir d’un lieu cher (Memória de um local dilecto), Op. 42, para violino e piano, entre Março e Maio de 1878. O primeiro andamento, Méditation, foi composto em Março desse ano em Clarens, na Suíça, onde Tchaikovsky também escreveu o seu Concerto para Violino, crê-se a pedido do seu aluno e possivelmente apaixonado, Iosif Kotek. Originalmente, era para ser o andamento lento do concerto, mas o compositor pô-lo de parte, compondo em seu lugar uma Canzonetta. No dia 16 de Maio, regressado à Rússia, começou a trabalhar numa obra em três partes para violino e piano, a única vez que compôs para essa combinação de instrumentos. No dia 25 de Maio, Tchaikovsky partiu para Brailovo, a casa de campo da sua mecenas Nadezhda von Meck, onde concluiu a obra no dia 31 de Maio. Para o primeiro andamento, usou a Méditation descartada, reorquestrada para violino e piano. As duas peças (a Méditation e a Canzonetta), são bem da mesma veia melódica, dessa elegia por vezes simples no seu enunciado mas profundamente pungente na sua finalidade expressiva. Os restantes andamentos, Scherzo e Mélodie, foram compostos após Tchaikovsky ter terminado o Álbum para Crianças em Maio de 1878. O Scherzo tem a aparência rítmica de uma tarantela, na qual a vitalidade rítmica ofegante lembra tudo o que Tchaikovsky deve a Schumann: uma mesma angústia febril, um mesmo sentido de evocações fantásticas. Mas a parte central do Scherzo constitui um contraste notável e é um Tchaikovsky mais mundano que aí surge, com uma melodia docilmente dançante que poderia ter saído de qualquer cena de um ballet. No finale, Mélodie, o compositor renuncia à bravura habitual dos andamentos conclusivos, substituindo-a por uma serenidade melodiosa que, após a densidade emocional dos andamentos precedentes, traz um bem-vindo raio de luz. O compositor, ao deixar Brailovo, deixou o manuscrito original da obra ao encarregado da propriedade, Marcel, para ser entregue a Nadezhda von Meck, em sinal de gratidão. Numa carta à sua mecenas, escreve: “Deixei as minhas peças, dedicadas a Brailovo, a Marcel para lhas entregar… Na minha opinião, a primeira é a melhor, mas foi a que me deu mais trabalho. Ao entregá-las a Marcel, fui acometido de uma melancolia indescritível, que permaneceu em mim até este momento; os lilases ainda em flor, a relva ainda por cortar e as roseiras apenas a começarem a florir!” Na mesma carta, o compositor pediu a Nadezhda von Meck que providenciasse uma cópia da obra, a qual foi feita por Władysław Pachulski, um membro da casa von Meck, e enviada a Tchaikovsky em Setembro desse ano. Enviou então a cópia ao seu editor, Pyotr Jurgenson, que publicou as obras em Maio de 1879, como Op. 42, tendo Tchaikovsky declarado na ocasião “estar extremamente encantado com a edição”. Em 1880, Méditation foi publicada separadamente, e tornou-se desde então conhecida como uma peça independente. Scherzo e Mélodie foram publicados em Abril de 1884. Em 1896 Jurgeson publicou a obra completa num arranjo para violino e orquestra de Alexander Glazunov, e nesta forma tornou-se talvez mais conhecida do que na sua forma original para violino e piano. Em 1908, foi lançada uma nova edição das peças para violino e piano, editada por Leopold Auer. Sugestão de audição: Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Souvenir d’un lieu cher, Op. 42 Julia Fischer (violino), Yakov Kreizberg (piano) – Pentatone, 2016
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasA Abertura Solene [dropcap]A[/dropcap] Abertura Solene Para o Ano de 1812 em Mi bemol Maior, Op. 49, conhecida por Abertura 1812, de Tchaikovsky, tornou-se uma das obra mais populares do compositor, em conjunto com os seus ballets O Quebra-nozes, A Bela Adormecida e Lago dos Cisnes. A abertura comemora o fracasso da invasão francesa da Rússia em 1812 e a subsequente devastação do “Grande Armée” de Napoleão. De carácter altamente nacionalista, é também conhecida pela sua sequência de tiros de canhão que é, em alguns concertos ao ar livre, executada com canhões verdadeiros. Foi encomendada a Tchaikovsky pelo director de concertos da Sociedade Imperial Russa e amigo e mentor do compositor, Nicolai Rubinstein, tendo em mente os 25 anos da coroação do Czar Alexandre II, em 1881, e a abertura da Exposição Universal das Artes e Indústrias em Moscovo, em 1882. A abertura da Exposição coincidiria também com a consagração de uma nova catedral cristã ortodoxa, a Catedral de Cristo Salvador, mandada erigir pelo Imperador Alexandre I para comemorar o fracasso da invasão, em honra dos soldados russos mortos, situada a algumas centenas de metros a sul do Kremlin, e que levou mais de 40 anos a construir. A catedral, que ostentava um sino gigante de 24 toneladas, seria apenas inaugurada no dia 26 de Maio de 1883, com a coroação do Imperador Alexandre III, sendo dinamitada em 1931 por ordem de Stalin, por ser um símbolo do Czarismo, para dar lugar ao colossal Palácio dos Sovietes, que iria albergar o Soviete Supremo da URSS, o maior edifício do mundo, mas cuja construção não chegaria a ser concluída, devido à invasão alemã em 1941. A igreja foi reconstruída a seguir à dissolução da União Soviética, entre 1995 e 2000, à semelhança da original. Embora não apreciasse particularmente este tipo de encomenda, como confessou numa carta à sua patrona Nadezhda von Meck, Tchaikovsky aceitou-a e começou a trabalhar no projecto em Outubro de 1890, concluindo-o em seis semanas. Napoleão era um general temido e o exército francês era considerado imbatível. Em 1812, a França invadiu a Rússia na tentativa de forçar Alexandre I a entrar no delicado sistema de alianças de Napoleão e, mais especificamente, aderir ao Bloqueio Continental. Todavia, a Campanha da Rússia terminou na retirada do exército francês. Complicações da campanha, como por exemplo o alongamento das linhas de suprimento e a presença de um exército imperial russo cada vez maior e melhor preparado, resultaram na destruição do exército, que de 600.000 homens, foi reduzido a 40.000. Alguns russos consideraram mesmo que houvera uma ‘intervenção divina’ a favor da Rússia. A Abertura 1812 começa com um coro inspirado no hino Deus ajude o vosso povo, da Igreja Ortodoxa Russa e baseia-se no antagonismo entre a vitória francesa inicial e a posterior revanche russa, contrapondo o hino da Rússia e o hino da França. Este país é musicalmente representado pelo tema de La Marseillaise, hino da Revolução Francesa. A vitória russa posterior, no mês seguinte, é representada por um diminueto do hino czarista Deus Salve o Czar e é seguido pelo sonoro troar de canhões. A obra inclui ainda fragmentos do folclore russo e temas religiosos. Após a Revolução dos sovietes e a consequente extinção do hino czarista, a abertura sofreu modificações, sendo o tema original substituído pelo coro final da ópera Ivan Susanin, de Mikhail Glinka, cujo nome original é “A Vida pelo Czar”, modificação também realizada por ordem do regime soviético. Na sua forma completa, a peça é executada por coro, orquestra sinfónica e banda militar com o auxílio de peças de artilharia e carrilhão. Em execuções em salas fechadas, costuma-se substituir os canhões por tímpanos (tambores), a fim de se obter um efeito semelhante ao do disparo das peças. A abertura foi estreada em Moscovo no dia 20 de Agosto de 1882, dirigida por Ippolit Al’tani debaixo de uma tenda levantada perto da inacabada Catedral de Cristo Salvador. Tchaikovsky em pessoa dirigiu a obra na cerimónia de consagração do Carnegie Hall em Nova Iorque, uma das primeiras vezes que um compositor europeu importante visitou os Estados Unidos. Curiosamente, tornou-se também um acompanhamento frequente de exibições de fogo-de-artifício no Dia da Independência dos Estados Unidos. Sugestão de audição: Pyotr Ilyich Tchaikovsky: 1812 Overture in E-flat minor, Op. 49 Ochestra of the Mariinsky Theatre, Valery Gergiev – Mariinsky, 2009
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasA “Grande Sonata” [dropcap]T[/dropcap]chaikovsky compôs a Grande Sonata para Piano em Sol Maior, Op. 37 em 1878. Embora inicialmente recebida com grande aclamação da critica, foi com grande esforço que a sonata manteve uma posição sólida no repertório moderno. Não obstante, a obra, dedicada ao pianista virtuoso alemão Karl Klindworth, é reconhecida como uma das obras-primas do compositor. A sonata foi composta em Clarens, na Suíça, e em Kamenka, na Ucrânia, entre Março e Abril de 1878, na mesma altura do Concerto para Violino em Ré Maior. Em cartas dirigidas ao seu irmão mais novo Anatolli, e à sua patrona Nadezhda von Meck, Tchaikovsky queixou-se das dificuldades que enfrentou ao escrever a sonata: “Estou a trabalhar numa sonata para piano… e a sua composição não está a ser fácil… trabalhei sem sucesso, com pouco progresso… tenho que voltar a forçar-me a trabalhar, sem muito entusiasmo e não percebo porquê, apesar de tantas circunstâncias favoráveis, não estou com disposição para o trabalho… tenho que extrair a custo de mim próprio ideias fracas e débeis, e ruminar sobre cada compasso. Mas vou insistir e esperar que a inspiração surja subitamente.” Nadezhda von Meck, mulher de negócios russa e patrona das artes, é hoje mais conhecida pela sua relação artística com Tchaikovsky, apoiando-o financeiramente durante 13 anos, para que o compositor pudesse dedicar-se à composição a tempo inteiro, tendo no entanto estipulado que jamais se poderiam encontrar. Tchaikovsky dedicou-lhe a sua Quarta Sinfonia. Von Meck apoiou também vários outros músicos, incluindo Nikolai Rubinstein e Claude Debussy. Quando o amigo de Tchaikovsky, o violinista Iosif Kotek, chegou a Clarens, os esforços do compositor depressa se concentraram no Concerto para Violino e o trabalho na sonata foi interrompido. Tchaikovsky retomou-o em meados de Abril, já em Kamenka, e completou a obra antes do final do mês. Foi estreada num concerto na Sociedade Musical Russa pelo seu amigo e pianista Nikolai Rubinstein, para grande regozijo de compositor: “A Sonata foi tocada com uma perfeição tão inatingível que não poderia ter ficado na sala para escutar algo mais, por isso abandonei-a completamente extasiado.” A obra foi mais tarde novamente executada por Rubinstein e recebeu elogios da crítica, sendo publicada por Pyotr Jurgenson em 1879. Em quatro andamentos, tem um carácter distintamente sinfónico. Estruturalmente, os andamentos são ligados pelo “Grande Tema” apresentado no primeiro andamento, embora expresso numa variedade de contextos. O primeiro andamento está escrito na forma-sonata comum, e o compositor usa uma gama de técnicas para imitar as cores orquestrais. Os temas apresentados são indubitavelmente russos, mas a observância da tradição musical ocidental é ainda prevalecente. O segundo andamento é um melancólico Andante que dá credibilidade ao talento natural de Tchaikovsky para o lirismo. É consideravelmente mais longo que os andamentos que o precedem. O terceiro andamento é um Scherzo breve e com ritmo acelerado, e pressagia algumas das técnicas usadas mais tarde por Sergei Rachmaninoff e Alexander Scriabin, principalmente na sua direcção melódica. O quarto e último andamento é um galopante Allegro muito mais característico do estilo musical de Tchaikovsky. Após secções difíceis a sonata encerra com uma exuberante coda. Sugestão de audição: Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Grand Piano Sonata in G Major, Op. 37 Sviatoslav Richter (piano) – Naxos, 2012
Michel Reis h | Artes, Letras e Ideias“Música que fedia ao ouvido” [dropcap]O[/dropcap] Concerto para Violino e Orquestra em Ré Maior, Op. 35 de Pyotr Ilyich Tchaikovsky é um dos concertos para violino mais populares, e também considerado um dos mais difíceis para o instrumento. A obra foi escrita em Março de 1878 em Clarens, um local de férias na margem do Lago Genebra, na Suíça, onde Tchaikovsky foi recuperar-se de uma depressão causada pelo seu desastroso matrimónio de seis semanas com a sua ex-aluna Antonina Miliukova, que inclusive o levou a uma tentativa de suicídio. Aí concluiu a sua Sinfonia nº 4 e a sua ópera Eugene Oneguin. Em Clarens, Tchaikovsky recebeu a visita do seu antigo aluno de composição, violinista e possivelmente amante Iósif Kotek. Os dois tocavam obras para violino e piano juntos, o que pôde ser o catalisador para a composição do concerto. Consta que uma das obras que Kotek lhe levou foi a Sinfonia española de Édouard Lalo, que o inspirou a criá-lo. Tchaikovsky não era violinista e foi assessorado por Kotek na composição da parte solista. Fez rápidos progressos, esboçando a obra em 11 dias e terminando-a ao fim de um mês, embora o andamento central tenha sido completamente revisto, pois Kotek e o irmão mais novo de Tchaikovsky, Modest, consideraram-no fraco. Kotek não tinha ainda prestígio suficiente para estrear a obra, pelo que Tchaikovsky inicialmente ofereceu a estreia ao seu amigo Leopold Auer e concordou dedicá-la ao violinista. No entanto, Auer recusou, argumentando que a obra era intocável, por ser demasiado difícil, o que feriu profundamente o compositor, e a estreia planeada para Março de 1879 foi adiada sine dia. Alguns anos antes, o seu amigo e colega Nikolái Rubinstein tinha também recusado estrear o seu Concerto para Piano n.º 1. Passaram-se dois anos e, um dia, o editor de Tchaikovsky informou-o que um jovem violinista, Adolf Brodsky, tinha aprendido o concerto e persuadido o maestro Hans Richter e a Filarmónica de Viena a tocá-lo em concerto. Tchaikovsky alterou a dedicatória para Auer e o concerto foi estreado no dia 4 de Dezembro de 1881, em Viena, na Áustria, mas pouco ensaiado e pobremente acompanhado. A reacção da crítica foi mista, e a obra certamente não foi recebida como a obra-prima que é considerada hoje. O influente crítico alemão Eduard Hanslick, presente na estreia, considerou-o “longo e pretensioso” e escreveu que não supunha que pudesse haver música que “fedia ao ouvido.” Tchaikovsky nunca ultrapassou esta crítica. O Concerto para Violino e Orquestra em Ré Maior, Op. 35 de Tchaikovsky possui três andamentos. O primeiro (Allegro moderato) inicia-se com uma breve introdução da orquestra, seguida por um pequeno trecho em que o violino toca a solo, preparando a entrada do tema principal (Moderato assai). O violino apresenta os temas em passagens extremamente virtuosísticas, ficando a orquestra encarregada de reapresentá-los logo a seguir. Já para o fim do andamento, o violino inicia uma longa e virtuosa cadência, escrita pelo compositor. Logo a seguir, numa passagem extremamente suave nas cordas, a flauta anuncia o tema principal. Tem início a reexposição temática, que conduz à explosão do tutti final. O segundo andamento, uma Canzonetta (Andante), inicia-se com um belo coral apresentado pelas madeiras. Este coral não apenas prepara a entrada do solista como conclui o andamento criando, assim, uma moldura onde solista e orquestra travam um belíssimo diálogo musical. O finale (Allegro vivacissimo) deve ser atacado logo após o segundo andamento, sem intervalo. Com temas eslavos e um jogo constante de acelerar e desacelerar, o terceiro andamento parece uma festa cigana onde o violino toca como se estivesse a improvisar o tempo todo. Este andamento incomodou profundamente Hanslick. Para ele, a maneira directa com que Tchaikovsky cria a atmosfera festiva cigana era obscena e incivilizada: “quando se escuta esta música é possível ver uma série de rostos selvagens, ouvir o seu linguajar bárbaro e sentir o cheiro de álcool”. Talvez para ele, e para os vienenses da época, isto fizesse sentido. Mas não é mais que uma música divina e encantadora, com um sabor exótico de um mundo distante. Sugestão de audição: Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Violin Concerto in D Major, Op. 35 Vadim Repin (violin), Kirov Orchestra, Valery Gergiev – Virgin Classics, 2003