Portos interiores

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 1 Maio

Mês morto, mês posto. Neste reino nem distingo o suserano, presto vassalagem apressada e às cegas sem tempo nem para contar as baixas. A vibração do telefone no seu silêncio canta um desespero que rima com a incapacidade para atender. Nisto de desconseguir devo ser dos melhores.

Amigo dos antigos, senhor de brilhante curiosidade e sempre atento às respirações do mundo, descobriu a ligeireza da impressão digital. Tenho algures cartas oriundas da Macau de há trinta anos, lugar de onde o Ricardo [Salomão] mas reenvia agora em formato de livro, ainda que viva e faça viver ali na Costa de Caparica. «Mágica Macau» (ed. Gandaia Edições) contém, diz logo com pressa adolescente na capa, «comoções, emoções e outros sentimemas», essa unidade mínima de sentimento. Mas a meia centena de poemas em prosa vão muito além e colhem frutos de observação madura e acutilante «Dos Sítios», «Das Pessoas» e «Das Outras Coisas», sendo que pessoas, sítios e coisas se encontram e desencontram para além da arrumação. «As árvores crescem com as raízes que caem das folhas que caem no chão onde as árvores crescem.» Macau cresce muito no que de cidade vai caindo no peito dos visitantes. Acontecerá assim em cada ponto do mapa, mas acreditemos ainda no espírito dos lugares, no único que cada soma proporciona. Os portos são cruzamentos de lugares, pessoas e outras coisas e nenhum será igual a outro.

«Nós ficamos a ver, do lado de fora./ Olhamos milénios de gestos, mas só vemos paisagens.» Enganadoramente, não tem a ver nem com magia nem com sentimento. O viajante que saiba ficar aprenderá pelo amor a ler. Ou vice-versa.

Com muita dificuldade se descobrirá, mas este falso e brevíssimo guia da Cidade do Santo Nome de Deus será das mais fulgurantes introduções ao enigma. Macau a única foi apenas pretexto, ponte de papel, pequeno balão iluminado. «Numa rua que é porto interior atrás dos prédios com cais à beira mar. Avenida de carros e camionetas, serralharias e velhas estâncias de madeiras perfumadas jazendo na penumbra funda de armazéns de poeiras suspensas. Cais e mar nas janelas rasgadas das entranhas dos edifícios. Numa rua que é porto interior, os carpinteiros constroem caixões com formas de nenúfar.» Fico sentido que não mo tenhas dado para editar, Ricardo, mas isso é sentimema que se resolve à mesa e com um abraço.

Horta Seca, Lisboa, quinta, 6 Maio

Morreu o Cândido Ferreira. Conservo uma das mais emocionantes interpretações que me foi dado ver, para mais temperado com acesso aos bastidores, aos ensaios, meu velho fascínio pelo inacabado, pelo imperfeito, pelo espontâneo. O verbo fez-se carne e o tempo parou para que acontecesse teatro, esse cruzamento quântico das coisas.

Foi em «Comunidade», do Luiz Pacheco, com encenação do Antonino Solmer, sendo o chão e céu uma das máquinas de cena do João Brites, cruzamento de barco e gavetão. Mas o Cândido absorveu tudo e da massa fez totalidade. E o espectador siderado. A cada leitura do Pacheco lá me vem, lá me virá sempre o Cândido. Sem querer e por coincidência descobri o parvo texto que escrevi para a ocasião.

«Na tal noite estava marcada viagem no interior da cidade, ao interior do teatro. Inesperadamente vejo-me bater hesitante numa porta grande, fazendo ladrar um cão chamado “actor” e interromper movimentos de personagens em estado de orquestração. O frio tinha-se sentado na plateia. O tabuado era de madeira, assente sobre bancos, esperando uma geografia final de sinais incrustados. Tratava-se de um bastidor. Os gestos estavam incompletos, em construção. O cenário era sugerido pela voz, pelas vozes. Aqui escuro. Além uma máquina. Repete assim. Não, o sapato não. Entras daqui. Há qualquer coisa de ritual, de caboco em obra esboçada. Cheira à pólvora do demiurgo que molda gestos, olhares. Cheira ao hálito dos projectos trazidos aos tombos. São passos em volta.»
Saravá, Cândido.

Casa do Alentejo, Lisboa, sábado, 8 Maio

Lisboa não deu pelo novel festival literário 5 L (de língua, literatura, livros, livrarias, leitura). A cidade ansiava por regressar a si, portanto a espreguiçar-se ao Sol, explodindo em milhentos regressos, peças, concertos, gritos e assim.

Mas não aconteceu comunicação e a que existia era de uma dolorosa infantilidade («Ler é fixe», com a mãozinha armada em roqueanrole, a sério?). Alinhámos por razões de amizade e outras estratégicas, contribuindo com Pessoa em cabo-verdiano para deitar a língua de fora ao Dia da Língua; com o nonsense do mano Luis [Manuel Gaspar] para celebrar aquela ideia de cidade que se esvai entre os dedos, como as ruínas da Solmar; com os muitos recomeços que a Ana [Freitas Reis] injecta no sangue dos seus versos. Não consegui deixar de me sentir estrangeiro, ainda que na mesa das funções. Os gestos de encontro saem-nos desajeitados e hesitantes, não nos foi permitida ainda a festa que deve acontecer em cada arremesso, tudo me surgiu deslassado apesar do esforço e alegria dos autores e dos apresentadores, a Inês [Fonseca Santos] e o João [Soares], e até o vírus deu ar de graça ao projectar-se na Linha de Sombra impedindo a Odi Marítimu de levantar âncora.

Lisboa, terça, 11 Maio

O Sporting ganhou. Não foi apenas o futebol, o futsal, o hóquei em patins, o ténis de mesa: venceu as probabilidades, o dinheiro, a má vontade, a descrença, a batota, o anti-jogo, a arrogância, a piadola, o mau perder, as faltas e as faltas de jeito, os velhos do Restelo e de Alvalade. Contra tudo e contra todos, por saber fazer com inteligência e coração, em cada um dos que vestem a camisola, treinador que pensa e sorri, capitão que corta e marca com peito e alegria, no guarda-redes que defende como quem ataca, no sangue e fresco do meio campo, centro da inteligência e do coração, por saber correr e sofrer nas laterais, por se transcender enquanto equipa dentro e fora de campo, por cruzar inteligência e coração. Por ser o clube de Peyroteo e Yazalde, que jogavam com y (na foto da infância), além dos tantos queridos, aparecidos e desaparecidos. E por ser redonda a bola.

20 Mai 2021