Pequena história do fundamental

[dropcap]N[/dropcap]o seu livro “Pequena História do Fundamental”, Ruth Cohen escreve que só podemos vir a saber algo que nós mesmos tornemos fundamental. E a história humana é a história do que fomos tornando fundamental ao longo do tempo. No centro desta sua reflexão estão as religiões, que sempre mantiveram para os seus crentes o carácter de fundamental. No fundo, as religiões são edifícios que sustentam o fundamental ao longo dos séculos. Mas quando se põe a analisar as diversas religiões, Ruth Cohen repara que a maioria delas está a perder esse seu carácter de fundamental. Mostra-nos que o catolicismo hoje está bastante longe daquilo que foi em séculos mais distantes ou mesmo nos séculos anteriores a este, que o judaísmo também de algum modo está a perder o seu carácter de fundamental, assim como algumas religiões orientais já o tinham perdido. De todas as religiões, segundo a autora, só o islamismo parece manter o seu carácter de fundamental; todas as outras são sombras do que foram, maiores ou menores, mais ou menos escuras. Num capítulo acerca das “novas religiões”, a que chama “A Aurora Escura das Seitas Evangélicas”, onde se vê um crescendo em algumas partes do globo, escreve que não podemos considerar isso religiões; são máquinas de fazer dinheiro e alienação.

Assim, nesta análise acerca da perda do fundamental nas religiões, destaca a grande e única excepção: o islamismo. A perda do fundamental nas religiões do Ocidente, deve-se, segundo a autora, à transferência da pulsão religiosa para o culto da imagem. E nós não podemos deixar de pensar que talvez haja uma estreita ligação entre a permanência do fundamental e do desprezo pela imagem, na religião muçulmana. Será a imagem, o culto dela, realmente um obstáculo ao que é fundamental, ao culto do fundamental? Será que este culto da imagem é realmente responsável pela perda daquilo que nos é fundamental, nas religiões e nas sociedades?

Ruth Cohen escreve: “A transferência da pulsão religiosa para o culto da imagem, está intimamente ligado a um culto novo e profano: o culto da visibilidade. Ser-se visível, ou estar constantemente visível para todos pode identificar-se com ser famoso, embora este último não esgote o primeiro. Ser uma imagem nas televisões, nas revistas e nas redes sociais é um fenómeno recente, tem apenas algumas décadas. O culto da imagem é acima de tudo um culto de alienação. Talvez por isso mesmo, o mais difícil para o ocidente entender acerca do islamismo, seja a sua recusa total e absoluta do culto da imagem, que começa logo pela imagem da mulher socialmente.”

Esta identificação entre o culto da imagem e a perda do fundamental, que inicialmente pode parece querer colocar a religião muçulmana num patamar acima na história do fundamental, revelar-se-á o seu contrário.

Há, contudo, uma passagem que devemos ler: “A imagem é cada vez mais um desperdício de tempo, um desperdício da vida. Ainda que os muçulmanos hoje possam estar errados em relação ao método e à hermenêutica da sua própria religião, a verdade é que eles tocam o fundamental, contrariamente ao ocidente, e esse fundamental enraíza sem dúvida numa descrença na imagem, num desprezo até pela afirmação de alguém através da imagem.” Apesar de tudo, e ainda que posteriormente Ruth Cohen ataque o islamismo, não deixa de transparecer alguma admiração pela recusa do culto da imagem no islamismo. “Ainda não tocámos o fundamental, estamos apenas na ilusão do mesmo. O desprezo pelo culto da imagem permite ao islamismo manter a sua relação com o fundamental do culto religioso, o fundamental da sua crença, mas afasta o islamismo de uma evolução, isto é, de uma transformação do fundamental, uma ruptura com um antigo modo de ver o fundamental, que é a igualdade.” Para Ruth Cohen, a igualdade é o novo paradigma do fundamental na história. Sublinha que é fundamental não aceitar o véu ou o niqab nas mulheres muçulmanas.

Não pela ausência de imagem, mas pelo que representa esse “roubo de imagem”. Roubo de imagem é como Cohen chama à imposição do niqab e da burka no islamismo. Mas, e é aqui que se dá a passagem para a igualdade, esse roubo de imagem não tem como finalidade o impedimento do culto da imagem, mas antes o exercício de um poder do homem sobre a mulher. Que começa com o roubo da imagem e continua no impedimento de aprenderem e de exercerem um trabalho que as dignifique, que lhes possa dar liberdade, serem auto-suficientes. A submissão choca muito mais do que uns trapos a taparem o rosto ou o corpo. Os trapos prendem a mulher à lei da religião, mas a impossibilidade de aprendizagem, ou de trabalho, por parte da mulher, prende a mulher ao homem. Esta pequena história do fundamental, para além de uma análise ao que foi sendo considerado fundamental na sociedade ocidental, é uma viagem pelas crenças e pelos jogos de poder que se escondem por detrás da imposição das mesmas. E uma análise pertinente ao culto da imagem através dos tempos. Poder-se-ia dizer um livro que vai da crença à igualdade.

14 Jan 2020