Paulo José Miranda Artes, Letras e Ideias hA caminho de nada [dropcap]T[/dropcap]om Trambley, escritor canadiano, nascido em 1940 em Ontario e recentemente falecido por Covid-19 – que ainda privou com Saul Bellow, embora fosse vinte e cinco anos mais novo –, quando publicou a sua obra prima «Uma Montanha de Nada», em 1987, disse numa entrevista que escrever não era uma tarefa como as do político, do médico, do economista ou do sapateiro, mas uma modalidade de desequilíbrio, uma disfunção orgânica como a bi-polaridade ou a esquizofrenia. «Refiro-me à escrita que transforma, que rasga os sentidos que damos por certo que temos da vida como se rasga um início de carta mal escrita. Ninguém escreve “A Metamorfose” num estado perfeito de saúde ou a gostar muito da sua vida ou da vida humana em geral. Na melhor das hipóteses, escreve em estado de estupefacção com a vida humana.» Em «Uma Montanha de Nada» Tom Trambley escreve a história sem história de Andrew Parker, através de um narrador que não sabemos se é ou não o próprio Andrew, se o narrador está a inventar Andrew à medida que escreve o livro ou se é alguém por quem tem ressentimentos. «Uma Montanha de Nada» começa assim: «Andrew subia a montanha, com a mochila carregada, os calções largos, as botas-tanque e um boné verde escuro. E subia a montanha sem perguntar uma vez sequer por que estava a fazer aquela caminhada. Nem por um momento se lembrou de perguntar: “Para que estou eu aqui a gastar um fim-de-semana a subir uma montanha com um pequeno grupo de estranhos?” Ou “É isto verdadeiramente importante para mim, para a minha vida?” Nunca perguntou nada. Mas de algum modo devia pensar que lhe fazia bem gastar um fim-de-semana a subir uma montanha com um pequeno grupo de estranhos, a caminho de um topo que não lhe ensinaria nada, não lhe revelaria nada, a não ser, talvez, dizer que fez uma coisa que a maioria das pessoas não faz. Mas o que mais há no mundo são coisas que a maioria das pessoas não faz. Cada um de nós não pode fazer todas as coisas estúpidas e desnecessárias à vida que existem para fazer no mundo. A pergunta “porque devo deixar a minha casa, a minha cidade, para gastar um fim-de-semana a subir o raio de uma montanha?” nunca foi feita e ali estava ele, debaixo do sol de Agosto, ligeiramente desidratado, apesar da garrafa de água, a carregar às costas uma mochila cheia de coisas que não existem na montanha, mas necessárias à sobrevivência de uma pessoa e por isso as transporta consigo. Andrew assumiu correr uma situação de relativo perigo para a sua vida, pelo menos de acréscimo de desconforto é, por não saber o que fazer com ela.» Trambley coloca-nos de imediato a conhecer o seu herói como alguém de quem não devemos gostar e com a sensação de que narrador não gosta do seu herói, de Andrew Parker. E, neste sentido, faz do seu livro uma espécie de noticiário a que estamos a assistir, dando notícias de pequenos actos trágicos ou ignóbeis. Andrew, contudo, não é má pessoa, é apenas como todos nós, não sabe o que anda a fazer na vida e por isso mesmo faz as coisas mais disparatada que se possa imaginar, como subir uma montanha com um grupo de pessoas num fim de semana. Mas poderia ser, e o livro mostra outras situações igualmente disparatadas, como inscrever-se em cursos de arte ou em aulas yoga ou até a tentativa frustrada de ter um gato, de modo a saber quem é ou a sentir-se bem consigo próprio. A meio do romance lê-se: «Andrew, a vida reduz-se a um dia. Infelizmente, tu não sabes o que é um dia. De sol a sol, é uma parte de ti que perdes e não tem volta.» O narrador não relata apenas a vida de Andrew, ou a critica, como tantas vezes parece, dirige-se também a ele, como se lhe falasse directamente. Um dos momentos mais hilariantes do livro é quando Amanda, uma colega do curso de «História da Arte Para Quem Nada Sabe de Arte» seduz Andrew e, perante o evidente, encanto deste pela colega, o narrador escreve: «Não, Andrew, não faças isso! Mesmo em prejuízo da minha narrativa, não faças isso. Que pode essa mulher fazer por ti, pela tua vida? como pode essa mulher libertar-te do alheamento acerca de ti em que vives? Diz-me, por favor, e eu faço com que vás para a cama com ela… O teu silêncio disse tudo, Andrew. Vou levar-te a casa, para pores a lasanha no micro-ondas e uma cassete no leitor de vídeo. Não é melhor do que ires para a cama com Amanda, mas a solidão pode um dia acordar-te e um erro a dois jamais.» Trambley, o narrador, conduz a sua personagem ao longo do livro com desprezo, mas ao mesmo tempo como se esperasse que isso mudasse, como se um dia acontecesse um milagre. No fundo, como muitos de nós nas suas próprias vidas, esperando um dia em que tudo mude, mas sem que se faça nada para que alguma coisa que seja mude. Leia-se: «Andrew, talvez um dia consiga deixar de te ver como uma esposa que aguarda que o marido se torne num príncipe que nunca foi ou uma mãe espere que o filho deixe a droga e consiga aquele emprego sonhado, mas por enquanto não acredito que vás algum dia mudar. Não é da tua natureza tornare-te alguém. A despeito disso não consigo apenas virar-te as costas e deixar de te falar como se faz a um canalha, apesar de não seres um canalha. Pelo contrário, tu és uma pessoa decente, que não sabe nada de nada e inocentemente procura por si onde precisamente não se pode encontrar. Porque o ginásio, a yoga, o curso de história da arte, as caminhadas, tudo isto é tu a afastares-te de ti. E também não penses que preciso de ti para escrever este livro. Vejo em ti aquilo que sou e detesto-te por isso, embora escrevê-lo, por alguma desconhecida razão, me apazigue. Se não te posso mudar, nem mudar-me a mim, maltrato-te. Tu representas o que de pior há na humanidade, porque me lembras exactamente quem sou.» O narrador odeia a sua personagem como um amante aquela que deixou de o desejar. Um dos momentos, talvez o mais eficaz, que nos coloca a hipótese de o narrador e Andrew Parker serem uma e a mesma pessoa acontece nesta passagem: «Na verdade, Andrew, tu e eu somos a mesma pessoa e tu sabes bem disso.» Evidentemente, pode tratar-se de um efeito retórico, em que alguém se reconhece como sendo igual ou semelhante a outro, mas ao longo do livro são dadas pequenas pistas, que fazem com que esta passagem se encaixe como a peça que faltava neste puzzle literário. Uma dessas pistas é a passagem de onde retiro o título para este meu texto: «Mas não te preocupes, Andrew. Na verdade, estamos todos a caminho de nada. Nós não somos diferentes dos outros. Nem eu sou diferente de ti, se é que não somos a mesma pessoa. Como podemos saber que não somos outro?» Seja como for, Tom Trambley nunca deixa cair a ambiguidade e isso é um dos trunfos do livro. Nunca sabemos bem qual a relação que existe entre o narrador e o seu herói. Nunca sabemos quem é o narrador a não ser através do modo como descreve e critica o seu herói. Nós também nunca sabemos quem somos, a despeito de termos de viver como se soubéssemos alguma coisa acerca disso. Um livro que nos prende tanto pela situação existencial relatada quanto pelo modo eficaz em que é narrado.