Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasAs Olímpicas [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s Olímpicas, de Píndaro – importante poeta lírico da Grécia Antiga (século V a.C) –, que já tinham sido traduzidas pelo professor Frederico Lourenço, e publicadas pela Cotovia (Poesia grega – de Álcman a Teócrito. Cotovia, 2006) foram agora traduzidas, também directamente do grego clássico, e editadas pela Abysmo. O autor da tradução, assim como das notas, é o filósofo António de Castro Caeiro, que já tinha traduzido as Píticas, editadas então pela Prime Books em 2006 e pela Quetzal em 2010, desta feita com o título Odes. As traduções, tanto do primeiro quanto do segundo livro, apareceram no seguimento de cursos que o filósofo ministrou na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Desde logo, ficamos a entender que há matéria aqui que importa à filosofia. Por outro lado, a tradução de um autor tão distante de nós (a língua em que escreveu já não existe), leva-nos a pensar a tradução. De modo geral há três modos de entender esta actividade: 1) deixar que a estranheza da língua de partida se mantenha na língua de chegada, o que pode implicar que aquilo que realmente é mesmo estranho num autor passe a ser para todos os autores dessa língua, que neste caso particular seria traduzir Píndaro do mesmo modo que se traduz Aristóteles (que António de Castro Caeiro também traduziu, e diferentemente); 2) ajustar a língua de partida à língua de chegada, como se o poema tivesse sido escrito na língua de chegada (neste caso em português); 3) que a tradução forme uma língua apátrida, uma espécie de terceira língua, em que já não é a língua de partida (nunca é), mas também não é propriamente a língua de chegada. Se as dificuldades de tradução são maiores em línguas distantes, como sejam o caso do chinês, por exemplo, não o deixam de ser menos numa língua que, embora seja o berço da nossa civilização ocidental, já não existe. Outra das discussões acerca da prática da tradução divide ao meio os tradutores: a preferência da forma sobre o conteúdo ou o seu contrário, caso o ideal de ambos não seja possível de alcançar. António de Castro Caeiro seguiu o critério de nos mostrar a força filosófica, a profundidade do sentido dos versos de Píndaro, ao invés de se ater a um excessivo rigor métrico (até porque não há equivalências em português para a métrica em causa). E este critério, deve-se sem dúvida ao facto do tradutor ter-se debatido durante anos com a leitura e um pensamento filosófico acerca da mesma leitura. Isto não retira beleza à tradução. Pelo contrário, pois se a beleza de um autor reside principalmente na profundidade dos versos, no modo como faz explodir o sentido da condição humana, ser fiel a isso é ser fiel à beleza dos seus versos. Logo na apresentação do livro, Caeiro escreve: “A lírica de Píndaro medita nos diversos destinos humanos abertos à possibilidade, mas configurados por uma inanulabilidade do sentido irreversível do tempo. A situação humana é descrita na sua incapacidade de anular o que quer que aconteça. Uma situação que também vincula o tempo.” Estes poemas eram escritos como louvor à vitória. Neste louvor estavam incluídos os vencedores e a linhagem de onde vinham. Por isso, são poemas também imersos na história da Grécia antiga, tanto no tocante aos mitos quanto no tocante aos factos. Se é que conseguimos distinguir uns dos outros. No Prólogo, a professora Maria José Velasco, escreve: “Os Odes Olímpicas são composições poéticas compostas para celebrar o triunfo dos vencedores nos jogos olímpicos, os jogos mais importantes realizados na Grécia. Além de seu carácter de competições desportivas, os Jogos Olímpicos serviam para manter o espírito de unidade de toda a Grécia, porquanto, durante a sua celebração, era proclamada uma trégua sagrada e suprimiam-se os confrontos entre as diferentes Cidades-Estado (Poleis). Por tudo isto, estas composições triunfais serviam não só para enaltecer as condições atléticas do vencedor como eram também uma ocasião para exaltar os ideais gregos de beleza e força física, pois proclamavam o homem perfeito como parecido com os deuses.” Há também ao longo dos versos de Píndaro o cheiro de fim do mundo, de fim de um tempo que já foi, o tempo dos heróis, o tempo de uma ética da honra e da coragem. É o fim da aristocracia grega arcaica, a que Píndaro assiste e regista ainda os últimos esgares, através do elogio da vitória na competição. E a vitória não é apenas a vitória da competição. Escreve Caeiro, na sua introdução às Odes: “Para Píndaro não há empates. O acontecimento fundamental da vida é a vitória. Não basta para isso a mera participação. Toda a disputa é individual. Não há desportos de equipa na antiga Grécia. Cada competidor está sozinho mesmo quando representa uma casa, uma família, uma aldeia, uma cidade ou uma nação. Apenas a vitória consegue anular a solidão máxima da disputa. O campeão granjeia a fama e a glória. O triunfo altera quem o obtém. Permite o reconhecimento, uma identificação e, assim, um ‘lugar’ para ser. O brilho esplendoroso da vitória amplia. Potencia a vida. ao vencer-se é-se maior do que se era. É-se falado. Transcende-se o espaço que se ocupa e o tempo durante o qual se existe. Expande-se e propaga-se. Mas a derrota é uma desgraça. Uma calamidade. Quem perde não apenas é esquecido como também quer ser lembrado. A derrota extirpa a simples hipótese de ainda ser possível. Deixa o perdedor entregue a si próprio. Desamparado. Sem ilusões. Não pode senão sobreviver-se. Infame. Píndaro vê a na situação da disputa pela vitória em competições desportivas um caso exemplar para o estudo da situação existencial do humano. E elabora-a como situação hermenêutica.” (Odes, pp. 13-4) O que Píndaro parece ver muito claramente, e nos mostra de forma excepcional e brilhante, é que os diferentes conceitos com que as palavras tentam mostrar a vida, se podem traduzir num coração humano através do canto, da poesia: vencer e ser derrotado; receber o bem e ser afastado dele; fazer amor e ser destruído por ele; alcançar a honra e cair na desonra; escrever uma bela canção e não conseguir escrevê-la. São experiências da mesma ordem. A experiência humana é uma sucessão de elevações e quedas, de vitórias e derrotas. A poesia é a arte que mostra como nenhuma outra essas experiências de exaltação na vitória e de frustração na derrota, quer sejam no combate, quer sejam no amor, quer seja na honra, quer seja na tentativa de fazer aparecer o belo. E é também o entendimento do tempo como sujeito, não só dos versos, mas também da vida humana e de tudo o que acontece. Em Píndaro, o tempo identifica-se com o ser. E isto é captado exemplarmente nesta tradução de António de Castro Caeiro. Terminemos com uma das odes, uma das mais curtas do livro: XIª OLÍMPICA Para Hagesidamo, de Locros Epizefírios, vencedor em Boxe (476 a. C.) Por vezes, os homens têm uma enorme necessidade de ventos, outras vezes, das águas dos céus, essas filhas das chuvas das nuvens. Mas, se alguém alcança sucesso através do seu esforço, ecoam hinos com voz melosa, hinos que são a origem de lendas futuras e a garantia credível para grandes feitos de excelência. Este louvor, dedicado aos vencedores das Olimpíadas, é desprovido de toda a inveja. Embora a minha língua esteja preparada para tratar com cuidado destas coisas, é de um deus que provém aquele homem, que floresce com disposição hábil para lidar com as coisas. Fica a saber agora, Hagesidamo, filho de Arquéstrato, que é pela excelência do teu boxe que eu vou entoar alto uma doce melodia, um enfeite para pôr no cimo da tua coroa feita com as folhas douradas da oliveira, ao mesmo tempo que honro a estirpe dos Lócrios Epizefírios. Entrai aqui nesta procissão vitoriosa, musas, dou-vos a minha palavra como garantia de que se trata de um povo que não evita os estrangeiros e não é inexperiente no que é belo, antes altamente sábio e guerreiro, em exactas medidas. Na verdade, o que é inato não pode ser alterado, nem a raposa cor de fogo, nem os leões que rugem alto podem alterar a sua disposição.