António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasNo outro lado do espelho [dropcap]É[/dropcap] notícia dos últimos dias, nos jornais e na televisão. O título é invariavel: Em Maputo, bebé nasce sem ânus. Irresistível chamada; lida a notícia vemos que há uma imprecisão na parangona, a desembocadura do intestino existe, houve apenas um desvio de rumo e o dito cujo “floresceu” no abdómen. Não consegui apurar onde, excita-me a ideia de que se localize no umbigo, seria de uma ironia insolúvel, mas o que interessa ressaltar é a dificuldade de nomear o que é. A coisa até me diverte, embora às vezes me enfureça. Pergunto ao gabiru: Brada, a loja das fotocópias? Pai, está a ver o restaurante chinês, ali na esquina? Restaurante chinês? — Eu fartinho de saber que é um restaurante português e ele, que trabalha a vinte metros devia saber igualmente. Mas repete — O restaurante chinês, da esquina… Para quê contrariá-lo? Sim, pai, a tabacaria é ao lado… Encaminho-me na direcção do dito restaurante, chinês do Minho. Na estante atrás do balcão, na tabacaria, dispõem-se várias caixas com canetas, de variegadas marcas, feitio e cor. Contudo, a prateleira só exibe um preço marcado, sob a caixa que arruma as esferográficas vermelhas. Gosto das vermelhas e do preço, 15 meticais, mas prefiro outras que estão ao lado. Pego em duas e nas fotocópias e proponho-me pagar. E diz-me a dona: São 395 meticais. Engasgo-me: Como, se as fotocópias são 15 e as canetas 30? Não…- Esclarece pronta — As de 15, são só as vermelhas… estas, são 190 cada… – Ah, bom não se adivinhava. Dado que só tem marcado um preço por prateleira… – É para facilitar… Não facilita e gaguejo, face àquela lógica invertida ou manca de rigor; envergonhado: – Nesse caso levo uma vermelha… Esta característica de uma outra orientação na ordem das coisas também às vezes a encontro em casa. Pede-me a minha mulher: – … se vais passar por lá, preciso que me troques cem dólares na tabacaria. – Na tabacaria? – Indago, conhecendo a “peça”. – Na tabacaria! – Confirma – A que fica ao frente ao BCI. Está claro? – Está claríssimo! Meia hora depois a situação está enevoada. Para trás e para a frente no rasto tabacaria. Enfim, troco o dinheiro em frente ao BCI, numa perfumaria. Para que confio eu em ti, se há vinte anos que sei, quando dizes Está na gaveta direita, está na gaveta esquerda… –, queixo-me em casa. Os “tiques” de cada casal. Não há, em Maputo, uma localização que pergunte na rua que não conheça percalços, uma probabilidade altíssima da indicação estar errada. Fiz um livro de entrevistas com uma figura interessante, um médico que já foi ministro da saúde e director do Hospital Central de Maputo e com muitas histórias para contar. A primeira vez que fui a casa dele, orientararam-me, com solenidade: – Na rua X, mesmo, mesmo, em frente à esquadra da polícia. Lá estive a rabiar, eram 80 metros à esquerda. Pior se pergunto a um “cinzentinho” (como popularmente se chama aos polícias), com toda a convicção do mundo manda-me para os antípodas do pretendido. Toda a gente “sabe” e não confessa que não sabe… Pelo motivo mais simpaticamente estulto: considera-se má educação não corresponder a uma solicitação, sendo preferível dar uma indicação errada do que não a dar. Uma vez fui perguntando por um endereço em Nampula e quase cheguei a Quelimane. Corolariamente, no aeroporto de Nampula nenhuma loja correspondia ao que se anunciava no lettring. Se estava Agência de Viagens vendia-se artesanato, se dizia Boutique de Senhora vendiam-se embalagens de comida para cães, etc. Bom, em Nampula, a minha preferida é a Livraria Central que tem motos na montra e, lá dentro, pneus e peças para tractor. No Gurué a única livraria da cidade vende todo o tipo de colchões, fronhas e lençóis. Livros, talvez, em sonhos. Estas inversões lógicas estendem-se à cronologia e à noção da própria idade. Numa entrevista, perguntámos a uma miúda a idade e respondeu para a câmara, muito serena: – Tenho noventa e nove anos. Estivemos dez minutos a explicar-lhe por a+b que isso era impossível, ela contou então que nascera num ano que em que houvera muita produção de melancia. Voltámos a gravar o depoimento, ela, muito espontânea apresentou-se e depois concluiu: – … tenho dezanove anos… assim serve? De outra vez, em Quelimane, onde dei aulas, numa esplanada, uma miúda que dizia ter dezanove anos (parecia ter quinze) meteu-se comigo com intenções peregrinas. Para a dissuadir perguntei-lhe: – Sabes que idade é que eu tenho? Ela olhou-me fixamente e depois atirou: – Tens oitenta e oito, é isso! Numa gargalhada, contrapuz o argumento final: num homem de oitenta e oito o guindaste está avariado. Popularmente, em Maputo, os verbos significam o seu oposto: trazer por levar, ir por vir, buscar por levar, emprestar por pedir emprestado, etc. Conto isto porque hoje encontrei uma citação de Evelyn Baring, que governou o Egipto por mandato da coroa britânica entre 1883 e 1907 e que a dado momento da sua volumosa história do Egipto escreve: A falta de precisão, que degenera facilmente em falsidade, é, de facto, a principal característica do espírito oriental (…) o espírito oriental, tal como as suas ruas pitorescas tem uma absoluta falta de simetria. É uma generalização absolutamente abusiva, que convém relativizar, embora — vá lá saber-se como funcionam os meandros do espírito — me desperte uma hipótese ontológica atordoadora, a de existir uma simetria psíquica planetária e oculta: Eles, os que vivem deste lado oriental (e digo eles, porque é diferente cá morar momentaneamente ou pertencer-se) vivem afinal no seu lado certo do planeta, a nossa cabeça, como a da Alice, é que ainda está no outro lado do espelho.