Afundar convicções

Embora mais conhecida pelas suas peças de teatro – «O Homem da Casa», «Judith Invadiu o Texas» ou «Ninguém Fode Bem De Calças» – e militância pelos direitos da mulher, Marie Jane Fawcett publicou um romance extraordinário em meados dos anos 70 do século passado com o título «Vida Familiar». O romance retrata o desencontro familiar entre uma filha e o seu pai, no interior do Texas nos anos 70. De um ponto de vista narrativo, o livro não tem nada de especial, a sua história poderia resumir-se deste modo: o capataz do rancho de um magnata texano tem uma filha muito bonita por quem o filho do patrão se apaixona e pretende casar; devido a favores, que se vão descobrindo ao longo do livro, surpreendentemente, o patrão vê esse casamento com bons olhos; e, também surpreendentemente, é a filha do capataz quem não quer casar, não por estar apaixonada por outro jovem, mas porque quer sair dali para estudar na universidade e seguir outro modo de vida, uma vida ligada aos livros. Dito assim, o romance não parece grande coisa, a despeito do radical ponto de vista da jovem, se pensarmos que estamos no interior do Texas em 1973. São os diálogos que tornam este texto precioso. Os diálogos e as reflexões que nos são dadas através do ponto de vista do narrador, em estilo clássico, heterodiegético e omnisciente. Leia-se uma passagem do livro: «Sara não conseguia imaginar a sua vida ligada a um homem. Viver para servi-lo, para lhe ser fiel, para tomar conta de uma casa, de uma família. Ver um homem chegar ao fim do dia a casa como se fosse um altar que ganhara vida. Nessa noite, ao jantar, resolveu enfrentar o pai. Pousou dramaticamente os talhares, pediu que lhe prestasse muita atenção e disse: “Para que quer que eu continue a mentira, pai? Porque quer fazer com que eu diga que vou ser fiel para sempre e ter filhos que continuem este modo de vida, que é uma irrealidade que todos à nossa volta teimam em proteger?

Porque quer que eu faça isso? Não vê que não conseguirei viver assim? Eu não preciso de um homem para viver, pai, mas preciso de ler.” Contrariamente ao que Sara esperava, o pai sorriu e olhou-a fixamente nos olhos, antes de começar a falar: “Diz-me uma verdade e podes fazer o que quiseres. Uma só, que se segure à chuva e ao sol, à passagem do tempo. Não vês que não nos resta nada a não ser a mentira? Não há uma única casa que não tenha sido erigida com mentiras, Sara! São elas que fizeram as paredes, os telhados, as cercas que delimitam o que é de cada um. Foram as mentiras que delimitaram as fronteiras dos estados e deste país. Achas que tudo isso é verdade? Há alguma verdade nisto? E achas que há mais verdade nos livros de que tanto gostas do que numa casa?” Parou de falar. Segurou os talhares para continuar a jantar, mas ainda antes de o fazer, e balançando a faca e o garfo, como se dirigisse uma grande orquestra, disse: “Casar com um homem rico, que te proporcionará tudo o que desejares e até coisas que não sabes que existem, não me parece que seja o pior que te possa querer. Se nada é verdade, minha filha, agarra na melhor mentira que puderes.” Quando se levantou da mesa, apesar de não ter entendido o pai, Sara sentia um medo desconhecido, como se a vida lhe tivesse revelado um segredo. Ainda antes de abandonar a sala de jantar, ouviu o pai dizer: “E ainda hás-de me dizer porque é que os livros são melhores que um homem para a tua vida! Achas que são palavras que te vão fazer feliz?” Era mais um furo no barco de certezas de Sara. Retirava-se ainda mais abalada. Não sentia que o pai tivesse razão, mas afligia-a não conseguir encontrar uma resposta que lhe contrariasse as palavras. O que mais a preocupava não era poder estar errada em relação ao que dissera ao pai, mas poder não ser tão inteligente quanto pensava. E não ser tão inteligente quanto pensava poderia ser um entrave ao que queria ser.

Pensou pela primeira vez que talvez possamos desejar muito ser aquilo que não podemos ser. O pai não conseguiu demovê-la de não querer casar, nem sequer levantar dúvidas acerca disso, mas fez aparecer a dúvida acerca de si mesma. Fechada no seu quarto, Sara pensava agora se seria capaz de ser quem queria ser. Não seria ela como a sua amiga Jane, que queria muito ser cantora, embora não tivesse talento e não soubesse disso? Tal como Jane, também ela podia estar completamente enganada em relação a si mesma.»

Marie Jane Fawcett não teme, neste livro, tocar todas as convicções que temos por certas, quer sejam as mais reaccionárias, quer sejam as mais revolucionárias. No fundo, Fawcett não põe apenas em causa aquilo que ataca, mas também aquilo que defende. Não põe em causa apenas os outros que estão contra ela, põe também se põe em causa a si mesma na defesa do que pensa ser certo. E, neste sentido, o objectivo deste romance parece ser afundar o barco. «O barco de certezas onde Sara e o pai viajavam, apesar de em posições opostas.» Afundar as convicções. Todas as convicções que se possam avistar.

«Vida Familiar» pode também ser visto como um romance de formação. No confronto com o pai, na tentativa de não casar com o filho do seu patrão e seguir a sua vida na Universidade, Sara vai descobrindo que pode não ser quem julga ser, acabando por entender que é esse o começo de começar a conhecer-se. Quase no final do romance, afundada em incertezas, parece dar razão ao pai, de que as palavras não são mais seguras para uma boa vida do um casamento, por exemplo, ou qualquer outra coisa. Ir para a universidade, estudar, ler livros é tão importante como cuidar da terra. «[…] tão importante como conduzir gado, dirigir um enorme rancho ou cuidar dos filhos e esperar o marido ao fim do dia. Sara entendia agora que o conhecimento pode ser tão decepcionante como a sua vida familiar. […] mas uma coisa era decepcionar-se por si mesma, pelas escolhas que fez, outra completamente diferente era decepcionar-se porque fazer aquilo que todos fazem, como casar-se e ter filhos. “Puta que pariu”, pensou, “prefiro a decepção à convenção”.»

Marie Jane Fawcett não defende a relatividade das decisões ou um mundo sem conhecimento, mas põe em causa tudo neste romance. Obriga-nos a nós, leitores, a encontrarmos razões válidas para as decisões que tomámos na vida.

9 Fev 2021