João Morais, músico | O Gajo da viola actua hoje no LMA

O palco do LMA recebe hoje João Morais, músico com raízes fundas em terras de punk e metal que se transformou em O Gajo depois de descobrir a viola campaniça. Os primeiros acordes começam a soar na Coronel Mesquita a partir das 22h

 

Desde os anos 80 até 2016 esteve ligado ao rock e ao punk. Como se deu esta passagem para a viola campaniça?

Além do rock, sempre ouvi muitos géneros diferentes de música. Sempre fui muito eclético nas minhas escolhas musicais. Mais recentemente, comecei a explorar a chamada música do mundo e a procurar mais informação. Sempre gostei da identidade geográfica dos projectos, ou seja procurar música pela sua identidade geográfica, seja música do Mali, seja música da Índia ou do que for. A curiosidade perante cada um destes projectos vinha precisamente do facto de terem uma identidade própria, que muitas vezes estava associada aos instrumentos usados. Apesar de tocar rock, sempre pensei que também gostaria que a minha música pudesse ter esta identidade ligada ao local e que a distinguisse do que se faz no resto do mundo. A melhor maneira seria, obviamente, pegar num instrumento tradicional português. Claro que se continuasse a tocar rock nesta linha tinha, se calhar, que transformar um pouco o instrumento que escolhesse. Mas, aí iria fugir à tal identidade e iria trabalhar numa identidade um bocado processada. Por isso, decidi também mudar o estilo de música que fazia. Lá está, como ouvia muita coisa diferente não foi difícil, até porque não gosto mais de rock do que gosto daquilo que estou a fazer agora. O rock sempre me influenciou mais porque desde criança que o ouço, por isso está mais enraizado. Mas já não se identifica tanto com a minha realidade actual. A viola campaniça vai muito mais ao encontro daquilo que pretendia fazer e tinha, claro, a tal identidade geográfica que eu pretendia.

Há vários instrumentos tradicionais em Portugal. Porquê este?

Comecei com uma guitarra portuguesa de Lisboa e aprendi a tocar uns fados. A guitarra portuguesa tem uma técnica muito interessante, mas muito peculiar que não quis desconstruir. Então, procurei outra solução. Essa procura demorou cerca de um ano. Nesse período, fui dar um concerto com a banda de rock que tinha em Beja e cruzei-me com um tocador de viola campaniça, o Paulo Colaço. Fiquei fascinado com aquele instrumento que achei muito bonito, com bom som e que ia ao encontro da tal procura que estava a fazer. Consegui uma viola através de um amigo em Odemira e, a partir daí, fechei-me numa sala de ensaios e fiz a tal adaptação da viola às composições em que já estava a trabalhar.

Como está a correr a carreira de O Gajo?

Não me posso queixar. Tendo em conta todo o meu passado, acho que este ano foi um ano de revolução em termos de aceitação do meu trabalho. A música que fazia estava circunscrita a um nicho e é óbvio que não era uma coisa que tivesse muita possibilidade de se expandir, por exemplo, para fora do país. O rock é uma coisa demasiado abrangente e cantado em português tem ainda menos possibilidade de ter qualquer tipo de chamada de atenção fora do país. Mesmo em Portugal, e como era uma música relativamente pesada, era um nicho. Portanto, não saía de um círculo muito circunscrito. Ao pegar num instrumento como a viola campaniça, foi radical a mudança de espectro de público que consegui alcançar. Não perdi as pessoas que me seguiam anteriormente, até porque, de alguma forma, uma boa parte delas continua a seguir o meu trabalho e ganhei muito público novo que se interessou pela sonoridade do instrumento. Ainda por cima, é uma sonoridade mais contemporânea, não tão agarrada à linguagem tradicional habitual neste instrumento. O disco acabou por ser uma novidade.

O disco “Longe do chão” parece ter também uma sonoridade muito universal, com momentos que lembra a música árabe, outras vezes o fado.

Sendo uma viola alentejana essa aproximação a uma sonoridade árabe faz sentido. É um instrumento do sul da Europa e é natural que faça lembrar alguma coisa também mais mediterrânica. Não sei porque toco as coisas como toco. Não uso nenhuma escala específica para ir procurar esta sonoridade, mas acho que o som da viola também puxa a associação à música mais árabe. Se tivesse uma viola tradicional de caixa possivelmente as composições seriam um bocadinho diferentes. Não querendo aqui igualar-me ao Carlos Paredes, há quem diga que tenho apontamentos que fazem lembrar as composições desse músico. Como é uma grande referência minha podem perfeitamente existir ali uns traçadinhos de guitarra portuguesa. O fado também poderá estar ali presente, de facto, embora numa percentagem mais pequena. As influências de rock também.

Quais são as suas influências?

O Carlos Paredes já é uma referência que vem de trás. Quando aprendi a tocar guitarra portuguesa foram as músicas dele que me ensinaram. Lembro-me que um dos “cliques” para esta ideia de tentar relacionar a minha música com a geografia de onde sou tem que ver com um concerto que vi da Anoushka Shankar e que saí de lá a pensar que era aquilo que gostava de fazer, sem ser com a cítara, obviamente. Diria que ela também foi uma grande influência. Depois há projectos como o dos americanos Wovenhand em que o vocalista usa um instrumento característico que acho que dá uma certa magia e uma cama perfeita para as histórias que canta.

Disse numa entrevista ao Público que esta nova etapa será talvez a sua fase da vida mais punk. Pode explicar?

Isto do punk é uma coisa muito relativa. Não ando a dizer que sou punk. Sempre tive uma banda que toda a gente identificava como sendo uma banda de punk apesar de muitas vezes nem concordar porque achava que era mais rock, sendo que o rock tem uma série de gavetas. Penso que quando se fala aqui de punk fala-se de atitude e no facto de fazer as coisas por mim e da forma mais independente possível. Isto também acontecia por haver falta de interesse das editoras. Aquela banda, os Gazua, de certa forma tinha que caminhar por ela própria. Sempre identifiquei a filosofia do punk com o facto de se tentar libertar da indústria musical que obviamente é mais repressiva em relação à criatividade individual. Na banda tínhamos a nossa liberdade musical mas, inevitavelmente, o rock faz-se de fórmulas e era difícil fazer coisas completamente novas, até porque temos as nossas referências e eu não sou nenhum inventor da pólvora. Quando comecei este projecto a solo, como O Gajo, senti que a viola me poderia transportar quase por caminhos por onde eu nunca tinha andado e que podia desconstruir as várias fórmulas. É nesta liberdade que está o punk. Assim, neste projecto sinto que esta atitude foi encontrada porque estou mais livre. O punk não tem que ver com uma imagem visual, tem que ver com o facto de conseguir ter alguma liberdade criativa.

Esteve na abertura de “O salão de Outono” a apresentar o novo trabalho “O Navio dos Loucos”. O que se pode esperar deste projecto?

O disco sai em Janeiro, mas ainda não está gravado. É um disco que é feito com a participação de convidados e com o uso da palavra. Eu e o José Anjos cruzámo-nos há pouco tempo e foi ele que me desafiou a ter uma aventura com as palavras. Ele tem a sua poesia que eu, entretanto, fui conhecendo e, não só gosto muito, como acho que o casamento com a viola campaniça é simplesmente genial. Por outro lado, esta junção aconteceu de forma muito espontânea. Temos trabalhado neste projecto, viemos aqui com ele e, possivelmente, pode vir a trazer muitas surpresas visto que a ideia é que não seja um projecto fechado.

Está pela primeira vez em Macau. Que impressões leva daqui?

Está a ser uma experiência espetacular, até porque não conhecia nada de Macau. Ainda não consegui ter muito bem a noção da comunidade que, se calhar, mais facilmente se irá interessar pelo meu projecto. Entretanto, também estou curioso com o que vai acontecer no concerto desta noite em que as pessoa são convidadas a participar e a improvisar. Aliás, a ideia é essa mesmo. Entretanto, dá para perceber que Macau é um sítio pequeno e que o jogo tem um peso enorme o que não é uma coisa que ache que seja muito benéfica para o desenvolvimento da cultura. As pessoas que tenho visto também não me parecem ser muito ligadas à cultura o que me leva a pensar que Macau tem espaço para crescer nesse sentido, mas o jogo parece ser o denominador comum a todo o território.

7 Nov 2018