Discípulos em Saís

Não fora esta cidade egípcia e nem nos lembraríamos que para a anunciar necessitamos desesperadamente do trema, mas a escrita e seus significados ficaram enterrados na areias do deserto, e entre nós, na espuma dos dias. Ela é tão longínqua que só Novalis a poderia ter ido buscar numa eloquente inspiração, talvez Atlante, pois foi lá que um sacerdote escrevera sua história. Novalis não é menos grandioso que as lendas, só que muito mais recente em sua curta vida. O expoente mais puro do Romantismo conseguiu surpreender a nossa noção de tempo e dialogar com todos eles a partir de uma cultura de excesso de lembrança.

Esta é a obra que nos leva neste preciso instante à defesa do planeta, devendo ser um marco nestas matérias de juízo natural (não naturalista) para reorganizar o ser no centro da sua função, que passar por tudo isto em florilégio de cânticos de salvação sem outras componentes, é abrigarmo-nos à sombra de intenções. A Humanidade não quer saber da natureza, mas sim do fluxo das coisas que julga pertencerem-lhe por deleite e facilidade de acção. Contudo, a natureza é um laboratório que só se abre quando em nós sente um discípulo pronto, que em todo o caso ela sempre se esconde, mas mostrando quase tudo o que a nossa versão idílica não vê.

Levantar o véu de Ísis é tarefa problemática em Saís, ela encontrava-se coberta e quem atentasse na sua desocultação ficaria com uma nudez que não entenderia, mas quem a procurasse entraria fundo no seu seio: o primeiro capítulo em título de prólogo esclarece isto mesmo, em tonalidades envoltas com propósitos de busca e solidez amorosa. – Ele achava-se menos hábil que os outros, mas julgava que a Natureza o amava, por isso, e sob o véu de uma confiança luminosa nos foi por ela buscar saberes. Estamos na presença de um avatar que resulta transfigurado na sua dupla essência como ente que não perdeu o fio de prumo da consciência natural. A síntese do seu tesouro é tão raiada de futuro que o estar aqui na “persona” se poderá considerar de ora em diante uma inutilidade na concretização do ser.

Narramos até onde nos for possível a mensagem do obreiro, pois que este sentido extraordinariamente dinâmico se encontra transfigurado em culturas várias e correntes vibrantes de influências, interpretações e aturadas reflexões, e de Schiller a Hoderlin, passando por ele «fabricou-se um último exemplo de ciência poética antes de Hegel decapitar um problema tão aristocrático com a guilhotina da Lógica». Neste memorável discurso recuperamos o xamã, mas também as bases da legislação da República, a antevisão sonhada por todos os espíritos que a vanguarda instruiu para melhorar os dons dos habitantes da Cidade. Uma não mestria do Mestre em pirâmide, mas de assuntos que norteiam a delicadeza paradoxal da Natureza. – Que ela não é benevolente! Quem a pode tocar com estes dons saberá dirigir-se à vida com a ternura exacta e a inteligência mais firme para dissipar as agruras indistintas da vil consciência que aterra na fronteira do seu próprio suplício.

Nem tendencialmente estamos unidos como nos encontramos aqui, pois que os dons nos filtraram em defensores de causas, mas as causas têm efeitos, e os efeitos que servem este propósito estão algures entre estas páginas e muitas outras, todas de poetas, antes do esquecimento à função que lhes preside; dialogar com os mistérios, exceder as capacidades, e ser da natureza um filho muito pródigo. Que «O inesgotável tesouro das suas fantasias não tolera que um só dos seus amigos se afaste de mãos vazias. Tudo sabe embelezar, animar, confirmar; e se parece, em certos pormenores, que apenas reina um mecanismo sem consciência nem sentido, o olhar que penetra até ao fundo das coisas descobre, na coincidência e na sequência dos acidentes singulares, uma encantadora simpatia pelo coração humano». Pode ser esta a função científica do poema inundando de compreensão o Universo inteiro. A ciência responde, mas deixa por definir esta parte da Natureza que a transcende.

8 Jun 2022