A história de Mário Póvoa, o português preso por navegar em águas chinesas 

Em 1965 Mário Póvoa vivia em Coloane e, juntamente com um grupo de chineses, partiu numa embarcação em busca do cadáver do colega, Fat Chun, que havia morrido afogado. Apanhados pelas autoridades por estarem em águas territoriais chinesas, foram interrogados e doutrinados sobre Mao Tse-tung e Chiang Kai-chek. Acabariam por regressar a Macau no dia seguinte. A PIDE, em Portugal, teve conhecimento do caso

 

A morte de Fat Chun por afogamento, aos 39 anos de idade, em Macau, no dia 23 de Junho de 1965, provocou um episódio marcante na vida do português Mário Póvoa, então residente em Coloane e natural da freguesia de Noselos, concelho de Moncorvo, em Portugal. Foi no dia seguinte que o português partiu numa embarcação, juntamente com familiares de Fat Chun e mais trabalhadores chineses, em busca do corpo deste homem.

No entanto, saídos de Coloane, acabariam por chegar a águas territoriais chinesas e detidos pelas autoridades na ilha de Ma Liu Ho, hoje conhecida como a ilha de Hengqin. Depois de prestadas declarações, voltaram ao território, à época administrado pelos portugueses.

O caso foi reportado ao então Ministério do Ultramar e à PIDE-DGS [Polícia Internacional de Defesa do Estado – Direcção-geral de Segurança] pelo Governador de Macau em funções, o tenente coronel António Lopes dos Santos. O documento que descreve esta aventura, consultado pelo HM, está hoje guardado no arquivo diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa.

Coube a um responsável da Polícia de Segurança Pública (PSP) interrogar, a 27 de Junho, Mário Póvoa sobre o que de facto tinha acontecido. O português, que trabalhava como capataz da brigada da “MEAU”, casado, à época com 36 anos de idade e residente na granja da “MEAU”, explicou tudo ao responsável da PSP.

A viagem começou no dia seguinte à morte de Fat Chun, portanto a 24 de Junho, pelas 16h15. Mário Póvoa embarcou com mais 14 chineses com o objectivo de “procurar um cadáver no mar de Má-Lou Hó”. Fat Chun estava desaparecido desde o dia 23 e esta era já a terceira tentativa para a localização do corpo.

O português fez-se então acompanhar por Va Fong, Cheoc Keong, Leong Peng, Vong Leong, Leong In, Sun Chong Seng, Ho Kuang e Chau Kang, “todos operários do Fomento”, bem como de Kong Kao, “peixeiro” e Lai Iong Seng, “operário da obra de ligação”. No mesmo barco seguiam “Ieong Lou, Lai Sio Ieng, Lai Sio Hoi e Chan Iong Cheng, respectivamente, mulher, filhos e prima do afogado”.

Às 16h foi avistada a embarcação das autoridades chinesas, descrita como um “barco tipo carga (barco esse de todos conhecido como sendo quem fiscaliza, por parte da China, o estreito entre Coloane e a ilha de Má Liu Ho)”. À PSP de Macau, Mário Póvoa explicou que, “como se encontravam dentro das águas chinesas, rumaram rumo às nossas águas [de regresso a Macau], sendo já dentro destas detidos pelo citado barco”.

As autoridades chinesas, no momento da detenção, “lançaram uma amarra à sampana (proa a proa)”, tendo conduzido os tripulantes à “ilha de Má Liu Ho onde chegaram pelas 17h”. “O barco que os deteve é do tipo de barcos que transportam carga entre as ilhas e Macau, tendo uma metralhadora, e nele viajavam três indivíduos fardados”, descreve o documento.

Alimentados e doutrinados

Chegados a território chinês para serem interrogados sobre os motivos pelos quais entraram em águas estrangeiras, Mário Póvoa e os colegas da tripulação deram as devidas explicações e nunca foram maltratados, bem pelo contrário.

Não só receberam os alimentos que pediram como foi-lhes entregue o tabaco da marca preferida.
“Desde o momento do desembarque foi-lhes dito pelas autoridades locais que estivessem descansados, pois nada de mal lhes aconteceria. Cerca das 20h foi-lhes servido de jantar em conformidade com aquilo que cada um pediu, tendo ao declarante [Mário Póvoa] sido servido ovos e uma cerveja depois de instado para que comesse algo, dado não querer comida chinesa.”

Ouvidos “três chineses” entre as 21h30 e a 1h, Mário Póvoa deitou-se por volta das 22h, “sendo-lhes dadas esteiras e cobertas, lamentando as autoridades chinesas não os poderem acomodar melhor”, conforme o relato do português à PSP.

No dia 25, logo às 10h, seria retomado o interrogatório até ao meio dia. As autoridades chinesas pretendiam saber o que fazia este grupo de pessoas nas suas águas e porque tinham fugido. O tratamento condigno dado aos detidos manteve-se. À hora de almoço “foi-lhes servida carne enlatada, tendo de novo as autoridades insistido com o declarante [Mário Póvoa] se pretendia qualquer coisa especial para a alimentação”. Nesse momento, o português “pediu tabaco para todos, tendo-lhe sido dados dez maços de tabaco consoante a marca que cada um pediu”.

Mas o interrogatório não se ficaria por aqui. As autoridades chinesas decidiram dar ainda uma aula sobre os acontecimentos políticos e sociais que então se viviam, nomeadamente sobre “a miséria do povo no tempo de Chiang Kai-chek” as “dificuldades no começo do regime de Mao Tse-tung”, a “actual igualdade entre cidadãos chineses” e a “não existência de miséria na China”.

Mário Póvoa e os seus companheiros ouviram também explicações sobre a “capacidade industrial com a construção de barragens”, tendo sido “citado, por exemplo, uma construção recente” na ilha de Ma Liu Ho. Não faltaram ainda informações sobre a “produção de aviões, bombas teleguiadas e armamento eficaz que está a ser utilizado no Vietname”, país que, à época, vivia uma guerra civil.

Interrogatório nocturno

Mário Póvoa só seria ouvido às 20h, tendo sido questionado sobre “se ele reconhecia ou não que errara em ir para as águas chinesas”. O português acabaria por afirmar que “fez isso inconscientemente e que foi à procura do cadáver de um homem que com ele trabalhou seis anos”.

Assinada uma declaração em como tinham sido devolvidos todos os bens dos detidos, estes regressaram na mesma embarcação à ilha de Coloane, tendo partido às 21h e chegado às 21h20. “À partida foram ajudados pelas autoridades a porem o barco na água, tendo estes, até ao último momento, instado com todos se pretendiam algo de comer antes de embarcarem”, lê-se ainda. Aquando da detenção, não foram utilizadas armas e existiu sempre “liberdade de movimentos”.

Com estas informações em cima da mesa, as autoridades portugueses em Lisboa não conseguiram concluir se, de facto, Mário Póvoa e os restantes tripulantes tinham violado o espaço marítimo chinês. “Dada a proximidade da ilha chinesa de Má Liu Ho no local da ocorrência, e a imprecisa definição de fronteira, é difícil afirmar-se, não obstante a constante informação atrás transcrita, que a embarcação tenha penetrado nas águas territoriais chinesas e que foi detida já nas águas territoriais portuguesas”, lê-se numa nota adicional.

O rebentar do 1,2,3

Para João Guedes, jornalista e autor de vários livros sobre a história de Macau, este episódio “ilustra bem o adensar do clima de desconfiança política e militar da China em relação a Macau”, e que haveria de “explodir” com os episódios do 1,2,3, em 1966.

“O facto de Macau não possuir então águas territoriais agudizava a situação. Além disso, os chineses sabiam que em Macau se encontrava em actividade uma rede terrorista que efectuava operações contra alvos no Interior da China, tendo afundado nesse ano, ou no ano anterior, um navio de guerra de grande envergadura que se encontrava ancorado no porto da cidade de Kong Mun, não longe de Macau.”

Segundo João Guedes, o general Kot Siu Wong era o espião chefe dos nacionalistas do partido Kuomitang em Macau e acabaria por desertar para a China, “levando consigo toda a informação sobre a rede de espionagem que comandava”. O responsável afirma mesmo que “esta acção [de Kot Siu Wong] terá contribuído para o eclodir dos tumultos de 1966”.

Moisés da Silva Fernandes, investigador da história de Macau da Universidade de Lisboa, dá conta que, entre 1950 e 1960 “havia, com uma certa regularidade, estes confrontos transfronteiriços, porque não havia entendimento entre a China continental e a administração portuguesa” quanto à definição das águas territoriais.

João Guedes relata mesmo as histórias que ouviu da boca do “senhor Bilro”, que depois de trabalhar como guarda da PSP em Coloane era porteiro da TDM. À época, era a unidade militar do “senhor Bilro” a responsável por acender o farolim da navegação que se encontrava a meio do canal entre Coloane e a ilha da Montanha.

“A embarcação com que cumpria essa missão diária era blindada, porque se o não fosse não a poderiam levar a efeito. Isto porque a maior parte das vezes as tropas chinesas postadas na costa do lado oposto abriam fogo contra ela, obrigando os tripulantes a abrigar-se atrás das chapas de aço da protecção para para não serem atingidos.”

Segundo João Guedes, “o senhor Bilro dizia que os militares chineses não tinham intenção de matar ninguém (pelo menos nunca o fizeram) mas o tiroteio servia para advertir as autoridades de Macau que o farol só era aceso todos os dias graças à boa vontade da China”.

O caso Salgado

Dos casos mais célebres de detenções de embarcações, conta-se a do capitão Álvaro Salgado. Moisés da Silva Fernandes recorda que este foi capturado no dia 22 de Março de 1952 quando velejava entre a península de Macau e a ilha da Taipa, tendo ficado em cativeiro na China durante 31 meses. Álvaro Salgado só seria libertado a 19 de Dezembro de 1954.

“Antes de ser preso, exercia na repartição de Informações do Quartel-General da guarnição militar”, descreve o historiador. João Guedes conta ainda que Álvaro Salgado tinha sido comandante da PSP em Macau e foi preso quando praticava vela desportiva. O vento tê-lo-á levado para as águas chinesas.

“Este oficial acabaria por ser acusado de espionagem, tendo estado quatro anos preso em Cantão, depois de ter sido passeado pelas ruas juntamente com outros suspeitos de serem agentes estrangeiros presos com cordas e com cartazes a enumerar os seus alegados crimes contra o povo”, remata João Guedes.

12 Mai 2022