Carlos Coutinho VozesMar terminal NUNCA imaginei tão depravado um pequeno mar interior como o Mediterrâneo que até no nome é enganador. Alega encontrar-se no meio da Terra e nem sequer está no meio do mais pequeno dos continentes como tais considerados, a Europa das sucessivas guerras imperiais. E muito menos a meio do Hemisfério Norte que tem serras e neves pelas costas e serras e areais escaldantes pela frente. Também é verosímil dizer que esta Europa do Sul tem como contraponto setentrional os países do Báltico e do Mar do Norte, onde a brutalidade nunca teve limites, nascida da coabitação com ursos e lobos e da infinitude dos gelos que produziram víquingues na Dinamarca, na Noruega e na Suécia, bem como lares cavilosos para os saxões e os anglos que exploraram a Grã-Bretanha, ao sucederem ao Império Romano. Foram, aliás, esses lapões e aparentados que, fundindo-se com hordas famintas vindas da Ásia mais próxima e do Norte da Índia, se converteram em normandos e foram constituir nacionalidades zaragateiras em ambos os lados do Canal, deixando as traseiras para os celtas sobrantes e os godos cristianizados que vieram até Cascais. O que agora importa, no entanto, são aqueles rochedos aguçados que se aninham junto às praias da Calábria e não tiveram a mínima hesitação em estraçalhar o casco de velho barco de madeira que trazia dentro, apertadas como sardinhas em lata, cerca de 200 pessoas. O naufrágio aconteceu na madrugada de domingo. Até à manhã de ontem, pelo menos 80 pessoas tinham sido resgatadas, ou chegaram à praia de Steccato di Cutro pelos seus próprios meios, e as autoridades já tinham recolhido 64 cadáveres, incluindo os de 11 crianças e de um bebé. A confirmarem-se as estimativas sobre o total de passageiros da embarcação despedaçada, o número de mortos poderá ultrapassar uma centena, mas esse número ainda não é conhecido. Nem sei se alguma vez será, porque, para o país que fez de Giorgia Meloni primeira-ministra, não se deve gastar muitos cabedais com uns chatos que fugiam da fome e das perseguições nos respetivos países – Paquistão, Afeganistão, Irão e Somália. Refugiados destes já a Itália tem que chegue, não é Ventura? Para quê aceitar mais? À tarde ANDAM por aí milhões e milhões de terráqueos a jurar que Voltaire dissera certo dia: “Posso não concordar com o que dizeis, mas defenderei até à morte o vosso direito a dizê-lo.” Ninguém imagina quantos trampolineiros, cartomantes, demagogos e branqueadores da História logo bateram palmas e quantos o citam sempre que dá jeito, nos parlamentos, nos comícios e nos debates televisivos, ainda hoje, do PS ao Chega, passando pelo PSD e pela IL. Na sua carta a Cideville, datada de 28 de janeiro de 1754, o grande filósofo do Iluminismo, que viria a sentir-se arrasado pelo terramoto de Lisboa em 1755, foi: “Este mundo é um grande naufrágio. Salve-se quem puder.” Precisámos de chegar ao século XXI para que, numa das suas imprescindíveis crónicas no “Ipsilon”, Ana Cristina Leonardo viesse pôr os pontos nos is, recordando que foi Eveliyn Beatrice Hall, ao tentar resumir o essencial do pensamento voltairiano, inventou e escreveu a tal frase que criador do Pangloss nunca disse nem pôs por escrito em lado algum. Daí que continue a fazer carreira aquele mantra democrático e cristão que atribui aos famintos africanos e asiáticos todas as culpas de virem morrer afogados no Mediterrâneo e, até, que o economista austríaco Joseph Schumpeter tivesse rejubilado com a sua descoberta da “destruição criativa do capitalismo”. Assim, ai de quem venha pôr em dúvida a falsa autoria da famosa frase posta na pena de Voltaire ou, mais perigoso ainda, vir alguém mostrar como o europeu, primeiro cruzado e, depois, colonialista, passou os últimos séculos a invadir, conquistar, pilhar, escravizar e até de seres humanos fazer mercadoria, justificando-se com a alegação de que muitos outros faziam o mesmo. Nada melhor do que citar também uma ave apocalítica igualmente citada pelo poeta nobelizado T. S. Eliot: “Ide, ide, ide, disse o pássaro: a espécie humana Não pode suportar muita realidade.”