Lançada em Macau primeira obra em português sobre a História da Literatura Chinesa

Foi ontem lançada, pela editora Livros do Meio, na Fundação Rui Cunha “A Literatura Chinesa Antiga e Clássica”, de André Lévy, numa tradução para língua portuguesa de Raul Pissarra. Trata-se da primeira que uma obra que abrange a literatura do País do Meio, das suas origens até ao início do século XX, surge na língua de Camões. “Esta tradução para português é um passo muito importante, um marco, para o conhecimento da nossa literatura. Não só para leitores mas também para tradutores para conhecerem as obras de qualidade que existem na nossa literatura”, disse o professor e poeta Yao Jingming, que falou aos presentes durante a apresentação da obra.

De facto, o livro apresenta aos leitores um vasto panorama da literatura chinesa. Como se pode ler na contracapa do volume, “A literatura chinesa mergulha fundo no tempo as suas origens. Este livro parte dessa remota época e percorre um longo percurso até aos primeiros anos do século XX, momento em que se considera o advento da modernidade. Pelo caminho, encontramos alguns dos mais belos textos que a humanidade produziu, pela pena de escritores de excelência, reflexos de uma civilização complexa, de uma História acidentada e de uma cultura caracterizada pela sua profundidade e erudição. Este livro de André Lévy proporciona-nos uma fundamental introdução a uma literatura cuja influência é patente no Oriente e que urge ser descoberta e entendida pelos falantes de língua portuguesa.”

Ainda segundo Yao JIngming, “A literatura chinesa é bastante complexa. É muito arriscado traduzir uma obra destas quando não se domina a língua e a cultura chinesas, mas este trabalho é bem conseguido pelo que posso avaliar das traduções dos originais chineses. Pessoalmente, gostei imenso desta obra de André Lévy, que não segue uma abordagem cronológica e tem uma linguagem muito sintética e também viva.”

Grosso modo, o livro apresenta-se dividido entre a literatura antiga, ou seja, das suas origens há mais de 3000 anos até ao advento da dinastia Qin (220 a.E.C.), e a literatura clássica, que abrange o longo período do império até ao início do século XX. Carlos Morais José explicou que no primeiro período considerado não tinha ainda sido efectuada uma uniformização dos caracteres e que, estando a China dividida em vários reinos, cada um usava caracteres a seu bel-prazer. Segundo o editor, é com a dinastia Qin que se efectua a referida uniformização o que tem consequências drásticas para a escrita. Depois, graças ao movimento de Maio de 1919, que pugnava pela modernização da China, inicia-se a fase “moderna”, com a simplificação de caracteres e o aparecimento de uma escrita mais simples e directa que virá até aos nossos dias. O livro queda-se nesse momento, não abrangendo a contemporaneidade.

A primeira parte da obra, além da literatura propriamente dita, inclui também extensas referências ao pensamento chinês, na medida em que refere os trabalhos de Lao Zi, Confúcio, Mozi e Zhuang Zi, entre outros, todos eles pensadores cuja importância se estende até aos nossos dias e de influência crucial na mentalidade chinesa.

Na era clássica, o livro começa por abordar a prosa clássica, fundamentalmente ensaística, que aborda temas variados da História à crítica literária, passando pelos chamados “ensaios fúteis”. Depois passa para a poesia que, geralmente, se considera ter atingido a sua Idade de Ouro durante a dinastia Tang, com nomes como Li Bai, Wang Wei, Du Fu a Bai Juyi. Finalmente, o volume descreve o que chama de “literatura de entretenimento”, na qual inclui o teatro, o romance, a literatura oral e os contos.

O tradutor da obra, Raul Pissarra, formado em Filologia Clássica, falou da sua admiração pela “cultura antiga” europeia; “talvez por isso”, acrescentou, uma das coisas que mais o fascinou na China foi “a antiguidade da cultura chinesa”. “Estar a viver num sítio que foi testemunha de milénios de uma cultura tão antiga, sempre me deixou calado, no sentido do respeito. Foi isso que me aproximou da cultura chinesa, a sua antiguidade”. Também o facto desta literatura “não ter sido contaminada por uma cultura exterior”, ser uma expressão pura de um povo, sempre fascinaram Raul Pissarra. Logo, confessou ter iniciado este trabalho devido ao “fascínio” que este “diamante puro” lhe causara.

Seguidamente, o tradutor fez leituras esparsas da obra. Os presentes tiveram então a oportunidade de ouvir trechos variados de literatura chinesa de diferentes géneros, da poesia ao conto, separados por extensas fatias temporais.

 

André Levy, sinólogo e tradutor

Figura maior da sinologia francesa, nasceu em Tianjin, em 1925, tendo crescido na concessão francesa desta cidade do Norte da China. Foi tradutor de várias obras de ficção chinesas, entre elas as traduções de dois dos quatro grandes ciclos novelísticos, a Peregrinação a Oeste (Xi you ji) e o Lótus de ouro (Jin Ping Mei). André Lévy foi também autor de diversas obras de sinologia, entre elas a que aqui se traduz. Depois de se formar na Escola de Línguas Orientais da Universidade da Sorbonne, seguiu uma vida de investigador e professor em Hanói, Kyoto e Hong Kong.

Em 1969 foi nomeado director de Estudos Chineses da Universidade de Bordéus. Em 1974 defendeu a tese de Doutorado de Estado sobre contos chineses em língua falada no século XVII. Entre 1981 e 1984, foi director do Departamento da Ásia Oriental na Universidade de Paris VII. Em 1995 tornou-se Professor Emérito da Universidade de Bordéus III. André Lévy recebeu várias distinções, entre elas, em 1998, a de comendador das Palmas Académicas. Faleceu em 2017.

17 Jun 2021

Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho

[dropcap]Q[/dropcap]uando observares bondade em alguém, inspeciona-te, desejoso de cultivá-la. Quando observares maldade nos outros, examina-te, temendo descobri-la. Se encontrares bondade na tua pessoa, congratula-te, desejoso de a agarrares com firmeza. Se encontrares maldade na tua pessoa, recrimina-te, considerando-a uma calamidade. Assim, aqueles que nos criticam com razão agem como professores para connosco; aqueles que nos apoiam correctamente agem como nossos amigos; aqueles que nos elogiam e são obsequiosos para connosco agem como vilões.

A pessoa exemplar exalta aqueles que agem como professores para consigo e ama aqueles que agem como seus amigos, assim odiando aqueles que agem como vilões para consigo. Ama infatigavelmente a bondade, sendo capaz de ouvir admoestações e segui-las. Mesmo que não desejasse melhorar, como poderia evitá-lo?

A pessoa mesquinha é o oposto. Apesar de totalmente desordenada, odeia que os outros a critiquem. É completamente indigna, embora deseje que os outros a considerem digna. O seu coração é como o de um tigre ou lobo e a sua conduta como a das bestas, mas odeia que a considerem um vilão. Àqueles que a elogiam e lhe são obsequiosos faz favores, mantendo à distância quem o possa admoestar. Àqueles que cultivam a correcção considera risíveis e aos que lhe são verdadeiramente leais considera vilões. Mesmo que desejasse não perecer, como poderia evitá-lo? As Odes dizem:

Estes homens conspiram e praticam a calúnia.
Isto é motivo para grande desgosto.
A qualquer plano que valha a pena
Oferecem a mais completa resistência.
Aos planos que nada valem
Desejam seguir sem reserva.

Isto exprime o que quero dizer.
A medida da bondade em todas as coisas é esta:

Usa-a para controlar o teu qi e nutrir a tua vida
E viverás mais tempo do que Peng Zu.
Usa-a para te cultivares e conseguir fama
E serás igual a Yao e Yu.
É apropriada em tempos de prosperidade.
É útil para enfrentar a adversidade.

– assim é o ritual.
Se os teus esforços de sangue, qi, intenção e pensamento estiverem de acordo com o ritual, estes serão ordenados e eficazes. Se não estiverem de acordo com o ritual, serão desordenados e estéreis. Se as tuas refeições, roupas, habitação e actividades estiverem de acordo com o ritual, serão agradáveis e bem reguladas. Se não estiverem de acordo com o ritual, encontrarás perigos e doenças. Se a tua actividade, postura, movimentos e passo estiverem de acordo com o ritual, serão gráceis. Se não estiverem de acordo com o ritual, serão bárbaras, obtusas, perversas, vulgares e desordenados.

Assim,

Se suas vidas forem sem ritual,
As pessoas não sobreviverão.
Se os negócios forem sem ritual,
O sucesso não prosperará neles.
Se estado e clã forem sem ritual,
A paz não virá a eles.


NOTA
Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, juntamente com o próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.

Tradução de Rui Cascais
15 Jan 2020

A influência da pintura ocidental na literatura chinesa

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] leitura de Lu Xun (1881-1936), o maior escritor chinês de todos os tempos, limpa e sara a mente, especialmente quando viajamos através da China, o que tem sido ultimamente o meu caso.

Em 1936 Lu Xun escreveu:   “中國的人民,是常用自己的血,去洗权力者的手,使他又变成洁净的人物的。”

O povo chinês usa muitas vezes o seu próprio sangue para lavar as mãos do opressor e fazer dele um santo sem mácula.

Hoje não vou falar da China nem do povo chinês. Em vez disso, quero salientar o lado pictórico da escrita de Lu Xun.

Poucas pessoas sabem que Lu Xun desenhou muitas das capas dos seus livros e que era um amante da pintura. Para ele, a arte plástica ocidental libertava a mente e dava asas à criatividade. “As cores do Céu e da Terra mudam e, na nossa limitação, descobrimos de repente que existe um caminho libertador.”

Vamos agora ler um excerto do conto Nuwa Vai Consertar o Céu (1922). Atentem na beleza estranha e cheia de sensualidade da sua paleta cromática.

“No céu rosado, passam volteando nuvens de um verde cinza, que escondem o brilho pulsante das estrelas. Nos limites do céu, o Sol brilha por detrás das nuvens cor de sangue como uma bola de fluido dourado, envolta na lava de terra ancestral. Um luar frio atravessa o céu, de um branco pungente.”

A heroína da história lembra ao leitor as mulheres de Van Gogh.

“… Uma luz deslumbrante envolvia-lhe o corpo amplo, sensual. Foi andando até ao mar, flanqueada pelo Céu e a Terra em matizes cor de carne, as suas curvas desapareciam num mar de luz pétala, até não ser mais do que um filamento do mais puro branco.”

Lu Xun foi claramente influenciado pelo esplendor e pelo olhar inovador dos impressionistas e pela melancolia e inquietação modernistas. A beleza que nasce do desespero é a cura que a sua escrita me proporciona.

Aqui vão mais algumas passagens:

“Talvez me lembre de ter atravessado a vagina da montanha num barquito. Vi melros, vi colheitas, flores silvestres, galinhas, cães, vi arbustos e troncos de árvores mortas, vi cabanas, torres e margens de rios. Sob o azul ultramarino, os lavradores, as suas mulheres e filhas estendiam as roupas ao sol. Os monges e os seus hábitos, as nuvens do céu e os bambus reflectiam-se na água lúcida, a que cada movimento dos remos trazia um raio de luz …”.

  • A Hora do Conto

O céu inquietante, de um azul profundo, tremeluzia como o rosto de um fantasma, como se quisesse abandonar o mundo dos vivos, deixar a solitária jujuba, conservando para si apenas a Lua.

  • Noite de Outono

O fogo está morto. As formas ardem, mas as chamas estão frias, congeladas, como sólidos braços de coral. As extremidades deixam escapar um fumo compacto, negro.

  • Fogo morto
6 Dez 2017