No limite da sombra

Um episódio é o mundo reduzir-se a si naquele meio metro quadrado em que a mulher permanece sentada com as costas apoiadas nas tiras esverdeadas dos ferros que atravessam a ponte. Um dia sem fim para aparar a ferrugem com uma cerveja na mão e duas garrafas já vazias perto dos artelhos. Os transeuntes passam e olham-na como se olha para uma escrava, faltaria apenas tomá-la pelas mãos e convertê-la em cinzas. Durante os largos meses em que navega pela cidade, sem casa nem dinheiro, também se sente por vezes uma rainha: caminha então pelo meio da rua e desvia-se dos eléctricos apenas no derradeiro instante, para depois se rir do fácies rochoso e franzido dos motoristas.

Viver na errância é suplantar o espaço, encontrar locais onde interinamente parar para depois se deslocar a partir dessas âncoras, nas mais diversas direcções e em ritmo de vaivém. Ao fim de dois meses, o mapa descrito pelos passos da mulher é parecido a um fole que se vai avolumando. Desenha-o com o pé na terra batida do jardim como se fosse uma nuvem que tivesse sido assoprada, cada vez com mais fôlego, nas últimas horas do dia da criação do mundo. Perceber a geografia fora das rotinas que se tornam normais é perceber-se a si, na medida em que uma pessoa é também um fole secreto que se alarga, que se desmonta.

Um dia, a mulher voltou a rir do rosto assustado do motorista do eléctrico e, ainda que sem grande motivação, seguiu na direcção do fim da linha. Foram quilómetros de um rumo magnetizado, as passadas sem a audácia do costume, um trajecto que lhe aparecia de forma indiferente. A certa altura a linha do eléctrico 3 terminou, mas uma outra prolongou-a. A mulher perseguiu essa outra linha e ganhou subitamente um novo alento. Após uma hora e meia de andamento, a vegetação selvagem já cobria os carris e, num terreiro onde os flamingos experimentavam os refluxos da vazante, a força da natureza descarnava-os por completo. Foi aí que a mulher encontrou a rulote abandonada e, numa cartolina que substituía os vidros partidos de uma das janelas, pôde ver o desenho.

Era uma esfera com duas enormes saliências, uma para cima e outra para baixo. O hemisfério do norte, chamemos-lhe assim, aparecia dominado por uma montanha ladeada nas vertentes por dois rios, enquanto o inverso, chamemos-lhe o hemisfério do sul, era todo um vasto oceano com uma única ilha, de onde despontava uma outra montanha, precisamente nos antípodas da do hemisfério norte. Dentro desta podia observar-se um túnel escavado em forma de cone invertido e logo dividido por nove círculos descendentes, o último dos quais tocava no centro do mundo, a “morada do diabo”. A partir daí um segundo túnel ascendia por dentro da montanha do hemisfério do sul, através de outros nove círculos que iam crescendo cada vez com mais luminosidade. No topo, o céu era pintado com aguarela de “azul cristalino”. O desenho estava assinado, no cume dessa luz branca e celestial, com letras de criança. Traços largos e redondos que davam a ver o nome que era também o da mulher vagante: Beatriz.

Três meses mais tarde, a mulher encontrou emprego num bar. Servia cervejas, cortava o pão e o fiambre, lavava os pratos e os talheres. Não tinha lido um único livro na vida, era esse o seu livro. Os clientes viam-na com a enorme tatuagem de uma rosa a meio da testa e, quando dela se despediam, o sorriso do adeus parecia distanciar o rosto como se regressasse à sua secreta fonte que pronunciava o mundo com palavras doces (“e quella, sí lontana/ come parea, sorrise e riguardommi;/ poi si tornò a l´etterna fontana” – “tão longe a sua fronte/ quanto ela parecia, riu e olhou-me;/ e depois regressou à eterna fonte”). O emprego durou muito pouco, mas o suficiente para que, todos os meses, ela pudesse acorrer ao serviço público que se ocupava dos desempregados. Viver na errância é sair de cena, despedir-se das altas montanhas que cumprem a rotina dos dias, vestir a pele da actriz que segue, sem ser vista, pelo limite da sombra.

15 Jul 2021