A estratégia de Wu Sangui

[dropcap]S[/dropcap]ó na História de Macau de Gonçalo Mesquitela encontramos explicado, com um fio condutor coerente, o trecho da História da China aqui narrado.

O único exército ming disciplinado e preparado para fazer frente à força militar do reino de Dashun comandada pelo Rei Li Zicheng, que partira de Xijing (Xian) e vinha avançando sem encontrar grande resistência, era o do general Wu Sangui (1612-1678) estacionado na Passagem de Shanhaiguan a cerca de 200 milhas de Beijing. Apesar das ordens para o general se deslocar para a capital e ajudar à defesa, este não se moveu, levando o Imperador Chongzhen a preparar a fuga do príncipe herdeiro Zhu Cilang (朱慈烺) e de outro dos seus filhos Zhu Cijiong (朱慈炯), fazendo-os escapar disfarçados. Depois, o imperador embriagou-se, matou as duas filhas e ordenou à Imperatriz Zhou e à sua favorita Yuan (袁) que se suicidassem, mas esta última recusou-se e apesar de a tentar matar, ela não morreu.

Li Zicheng no dia 18 da terceira Lua cercou Beijing e no dia seguinte, 25 de Abril de 1644, cedo de manhã Chongzhen enforcava-se.

“Conhecida a morte do imperador, seguindo os rituais prescritos muitos dos dignatários da corte, cumprindo os cânones de Confúcio, mataram-se, assim como duzentas concubinas. Nessa mesma tarde, Li entrou no palácio imperial e quis verificar pessoalmente a morte do imperador. Dois dias depois dava a primeira audiência aos sobreviventes da corte”, onde os humilhou, deixando-os prostrados a levar pontapés e bofetadas dos soldados vitoriosos, a quem foi autorizado o saque da cidade. “Mandou ainda perseguir e matar os membros da família imperial.”

Li Zicheng trazia pressa em ser coroado imperador, no entanto quis cumprir os rituais confucionistas e assim deu ordem ao Presidente do Tribunal dos Ritos para calcular a data mais auspiciosa para se sentar no Trono do Dragão.

O general Wu, a governar a Passagem de Shanhaiguan, esperava para decidir qual o rumo a seguir, pois sabia ser o seu exército a fazer pender a vitória para o lado por ele escolhido. Primeiro quis perceber como o grupo rebelde de Li actuava e tratava os submissos oficiais ming e sabendo também estar o exército qing na fronteira preparado para invadir, poderia contar com um ou com outro para combater as forças do adversário que escolhesse.

Esperar para ver

Recebida a confirmação da ocupação de Beijing, Wu Sangui escreveu ao pai, um oficial de alto grau na corte, aconselhando-o a submeter-se a Li Zicheng e pediu-lhe para tentar resguardar a sua favorita Chen, colocando-a como concubina no Palácio Imperial para ser bem tratada e não correr perigo.

Wu conhecera Chen Yuanyuan em Suzhou a cantar numa companhia de ópera e logo por ela se apaixonara. Sentava-se na primeira fila a observá-la e como jovem atraente conseguiu a sua atenção. Andava neste namoro quando o pai o mandou chamar a fim de ir realizar os exames para oficial militar em Beijing. Prometeu vir buscá-la para se casarem e após passar nos exames de keju mandou um criado com dinheiro para a comprar, mas tinha ela já sido vendida a um outro oficial da corte. Este comprara-a para a oferecer ao Imperador por ser parecida com a sua filha, a favorita concubina Tian (田), que um ano antes morrera. Como o soberano não a aceitou, estava ela livre e assim disponível, tornou-se concubina de Wu.

Sabendo Chen já em segurança na corte, Wu usou de novo os serviços do pai para fazer chegar a Li Zicheng a sua proposta. Dispunha-se a servi-lo, “se fossem aceites duas condições: a de que lhe fosse enviada Ch’en e que o príncipe herdeiro, que fora aprisionado, lhe fosse confiado. Propunha até retirar-se para as províncias ocidentais, levando o herdeiro Ming, desde que lhe fosse concedido o título de Príncipe e o respectivo poder feudal sobre aquelas províncias. Comprometia-se a, se assim fosse, não hostilizar o novo imperador.”

Percebendo o objectivo da entrega do herdeiro directo da Dinastia Ming, Li, furioso com Wu, propôs-lhe que se rendesse o recompensaria, caso contrário “atacá-lo-ia e mandaria decapitar seu pai.”

Sem resposta de Wu, entretanto a negociar uma aliança com Dorgon, o Príncipe de Rui regente da manchu Dinastia Qing, Li, sem saber de tal, após uma semana de espera fez-lhe um novo aviso e três dias depois marchava à frente de 60 mil homens contra o exército ming. A desproporção de forças era tal que levava a convicção da rendição de Wu.

Li atacou em Yipianshi, próximo de Shanhaiguan, seis dias depois do contacto entre Wu e Dorgon, em que o general, “alegando a sua fidelidade aos Ming e o desejo de se vingar da morte do imperador Ming, aceitara o título de príncipe feudal manchu e a coordenação das suas forças com a dos manchus.” Para tal abriu as portas da Grande Muralha à entrada do exército qing na China.
Iniciado o combate, de repente apareceu a cavalaria manchu e Li, percebendo não ser a vitória fácil, retirou-se e enviou a Wu o príncipe herdeiro e a concubina Chen.

Vira-casaca

Com o príncipe Zhu Cilang junto a si, Wu Sangui logo o proclamou imperador e devido à menor idade assumiu-se seu regente. “É nesta qualidade que negoceia a paz com Li, pela qual este devia deixar Pequim, podendo levar o produto do saque, e retirar-se para as províncias do Oeste. Caso os manchus atacassem, reuniriam as suas forças para lhe resistirem. Dividiam, assim, a China entre os dois, passando Wu a posição bem mais forte como regente do imperador, em vez de ser príncipe feudatário dos manchus.”

Sem possibilidades de resistir às forças aliadas, Li regressou a Beijing onde soube do acordo feito por Wu também com os manchu e logo prendeu o pai do general, ameaçando matá-lo se este não aceitasse reconhecê-lo como imperador. Wu, sem ceder à invocação da Piedade Filial, lembrou que pelas “próprias regras confucianas, o pai, como dignatário da corte imperial, deveria ter morrido em defesa do imperador. Assim não se sentia obrigado a sacrificar a sua lealdade à dinastia, à vida do pai. O velho Wu foi executado por Li, juntamente com todas as mulheres da família.”

Antes de se retirar de Beijing, Li Zicheng, sem esperar pela data auspiciosa, fez-se coroar imperador e partiu levando tudo o que pôde do palácio imperial e ao sair, lançou fogo às muralhas do palácio.

Dorgon, sem suspeitar do acordo entre Wu e Li, continuava a preparar a invasão a Beijing, mas quando Li daí se retirou com o seu exército, logo se antecipou a Wu e colocou as suas tropas a cercar a cidade, proibindo que Wu e o jovem herdeiro tivessem acesso ao palácio. O general acampara fora da cidade e preparara para o dia seguinte, 6 de Junho de 1644, a coroação de Zhu Cilang no Palácio Imperial, para colocar Dorgon perante o facto consumado de haver já no trono um imperador ming. Precavido, o Príncipe de Rui foi no dia da entronização buscar ao acampamento o general e com ele se dirigiu ao palácio onde na Sala do Trono lhe foi então solicitado que como regente aceitasse o trono, o que logo acedeu em nome do Imperador Shunzhi.

29 Abr 2019

O rebelde Li Zicheng

[dropcap]N[/dropcap]os artigos anteriores, a personagem de Li Zicheng foi superficialmente tratada, tal como os acontecimentos em que participou até chegar à capital da Dinastia Ming.

Pesquisando inúmeras Histórias da China, encontramos pouca informação e sem profundidade.

Por um acaso apareceu-nos a História de Macau de Gonçalo Mesquitela, a permitir-nos encadear os factos e ter um entendimento razoável desse período. No entanto, alguns episódios expostos não têm comprovação, pertencendo ao que se dizia ter ocorrido. Procuramos, quanto possível, retirar essa parte lendária e juntar com fontes chinesas, sobretudo Bai Shouyi, para tentar descrever apenas o que parece razoável ter acontecido.

No primeiro dia da primeira Lua de 1644, Li Zicheng, antes de avançar com um poderoso exército de centenas de milhares de homens para Beijing, criou o Reino de Dashun em Xijing, onde se vestiu com trajes imperiais, escolheu a imperatriz, nomeou ministros e instituiu a sua corte à maneira da Ming. Quando a notícia dessa proclamação chegou a Beijing, nesse dia ocorreu um terramoto arrasador em Fengyang, terra natal do fundador da dinastia Ming, presságio a anunciar o fim da dinastia. Destino traçado desde 1641, quando numa refrega Li perdera um olho, dando-lhe a convicção de ser ele o escolhido como dizia a previsão de astrólogos de Shaanxi: “a dinastia Ming cairia e o Império seria conquistado por um homem com um olho só”, segundo Gonçalo Mesquitela.

Li Zicheng nascera a 22 de Setembro de 1606 em Mizhi, Shaanxi, tendo desde muito cedo ficado órfão e por isso, começou por trabalhar num templo e aos 21 anos estava empregado nos serviços de correio como ferreiro num entreposto de muda de cavalos. Devido à reorganização desses serviços foi em 1628 despedido, voltando à terra natal. Aí encontrou a mulher amancebada com outro homem e sem dinheiro para pagar a dívida que contraíra, matou o seu credor e a esposa. Pela lei seria condenado à morte e por isso fugiu para a província de Gansu, onde se alistou no exército ming em Fevereiro de 1629. Como os manchus pressionavam a fronteira do Nordeste, as tropas ming foram chamadas para irem proteger os arredores da capital. Por falta de abastecimento e de pagamento a revolta contra o governo surgiu no seu regimento e nos finais desse ano mataram o oficial militar WangGuo (王国). A partir daí juntou-se a um dos muitos grupos rebeldes de camponeses que desde 1627 se revoltavam contra as altas rendas e taxas que o governo ming lhes obrigava a pagar, apesar da terra, numa severa seca, já nada produzir. Eram milhares de camponeses em fúria, desesperados pela sua sobrevivência, a lutar de uma forma desorganizada, sem unidade alguma. Foi então que Li Zicheng se revelou como um chefe nato, onde nas áreas por si controladas roubava aos ricos para dar aos pobres, abria os celeiros e distribuía alimentos a quem precisava e incentivava os camponeses a recuperarem as terras ocupadas ilegalmente.

Em 1631, o governo ming despachou tropas para em Shaanxi combater esses rebeldes e estes foram para Shanxi, juntando-se Li Zicheng em 1633 ao grupo do seu tio Gao Yingxiang, onde também se encontrava Zhang Xianzhong. Para aí o governo ming enviou o capitão Cao a fim de terminar com a insurreição. Derrotados, parte do grupo onde se encontravam os chefes fugiu para Henan. Quando em 1634 o capitão Cao foi mandado para defender Datong, pois os manchu da Dinastia DaJin atacavam pela segunda vez o território ming, os rebeldes puderam agrupar-se. Em Junho, os ming enviaram um outro militar, o capitão Chen para comandar as cinco províncias do Oeste e exterminar os rebeldes. Fazendo um ataque simultâneo em todas as frentes, conseguiu em Shaanxi cercar o já muito enfraquecido grupo e este, encurralado sem possibilidade de escapar, pretendeu aceitar a derrota e render-se. Os chefes para se libertarem fizeram um acordo, prometendo retirar-se para o Norte, mas o capitão executou 36 prisioneiros. Como vingança, mataram alguns funcionários locais e fugiram depois para as montanhas.

Profanação dos túmulos

Em 1635, na cidade de Xingyang, província de Henan, os chefes dos trinta grupos armados rebeldes que restavam, reuniram-se e planearam uma estratégia para coordenar a defesa.

Dividiam-se em quatro direcções e a cada um foi distribuída uma região de intervenção, cabendo o Leste ao grupo de Li, Gao e Zhang. Após a reunião, estes conseguiram ocupar Fengyang (actual distrito de Huai’an em Jiangsu, fronteira com Anhui) onde no Lago Hongzhe se encontravam as sepulturas dos ancestrais da família Zhu. Aí saquearam o túmulo do bisavô do primeiro imperador da Dinastia Ming.

Consternado com a profanação, a reacção do Imperador Chongzhen (1628-44), neto do Imperador Wanli, foi mandar “celebrar cerimónias fúnebres para o perdão dos seus ancestrais” e ordenar a prisão dos “oficiais com comandos e executar o eunuco responsável pelos túmulos imperiais.”

Zhang Xianzhong seguiu depois para Leste e em Anhui capturou algumas cidades, enquanto Gao Yingxiang e Li Zhicheng foram para o Sul de Shaanxi onde derrotaram por várias vezes as forças ming, enviadas para os combater. Em 1636, Gao foi capturado numa emboscada e executado, passando as suas forças a ficar submissas a Li, que lhe tomou o título de Rei Dashing. Lutava em Shaanxi e Sichuan, quando em Zitong foi derrotado no ano de 1638, conseguindo escapar com 18 dos seus fiéis seguidores, ficando o resto do grupo disperso. Também Zhang fora derrotado e rendera-se ao governador de Hubei. No Verão de 1639, Li e Zhang juntos voltaram à acção, promovendo uma nova revolta, até que em 1640 decidiram delimitar as áreas de influência para cada um. Zhang Xianzhong fixou-se em Chengdu, onde em 1641 as forças ming se concentraram para o atacar, aproveitando Li Zicheng tal circunstância para atacar Luoyang, onde matou o Príncipe de Fu, Zhu Changxun e do palácio levou todo o cereal, ouro e prata, que distribuiu à esfomeada população, ganhando assim um entusiástico suporte para o seu bando, que aumentava em número e agressividade. Ainda nesse ano, em Kaifeng Li perdeu o olho esquerdo, levando-o a acreditar no destino de vir a ocupar o trono da China. Em 1642 capturou Xiangyang onde se declarou Rei de Xinshun e nomeou oficiais civis e militares. No ano seguinte seguiu para Xian e conquistada, mudou-lhe o nome para Xijing. Devido à fraca oposição das tropas provinciais, dominava já os lugares situados a caminho de Pequim, onde nessa área de Shaanxi, Hubei, Shanxi e Henan, criou Da Shun, Região da Grande Obediência.

A 8 de Fevereiro de 1644, dia do Ano Novo, Li Zicheng foi à sua terra natal e vestindo-se com o traje de imperador prometeu que, quando ocupasse o trono da China, honraria os seus ancestrais com títulos imperiais até à sétima geração. Nesse dia em Beijing ocorreu uma terrível tempestade de areia. Um mês depois estava às portas da capital da Dinastia Ming.

15 Abr 2019