A menina gosta de ler?

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] menina gosta de ler?” Era sempre assim que, na pequena cidade onde os meus pais vivem desde sempre, as Testemunhas de Jeová se me dirigiam. E não podia dizer que não. Era como se soubessem, na verdade. Como se eu trouxesse um sinal no rosto (bem, na verdade eu tenho mesmo um sinal no rosto), emitisse uma frequência que os fizesse abordar-me constantemente, todos os dias, mais do que uma vez por dia. Ou talvez o fizessem com toda a gente, talvez encarassem todos os transeuntes como se vendo-os pela primeira vez.

Sempre aos pares, para ser mais difícil dizer não, ou talvez apenas para fazerem companhia uns aos outros, quem sabe. Nunca perguntei. E nunca perguntei de volta: “O senhor, gosta? E a senhora, lê muito?” Talvez devesse tê-lo feito. Na esquina do muro do jardim público, algures no passeio de caminho para algum lugar, esta pergunta, e a mão estendida com uma ou duas revistas, que por vezes aceitava e, outras vezes, não. Quando aceitava, lia sempre, por inteiro ou pelo menos a maior parte, com o filtro necessário. Porque a menina gosta muito, muito de ler. Mas se às vezes fazia o gesto de rejeição com a mão, outras vezes parava e ouvia. Outras vezes fugia para o outro lado da estrada.
Lembrei-me disto no outro dia quando (estava a menina cheia, cheia de pressa) saltei do autocarro 728 em Santa Apolónia, em passada larga e decidida rumo a casa quando algo me chamou a atenção. Alguém, na verdade. Um homem, faixa dos quarenta anos, sem-abrigo, deitado relaxadamente debaixo da larga ombreira da porta, manta até à cintura, pernas levantadas, cigarro fumegante, paz no rosto, paz no corpo. Voltei atrás. “Olá, posso saber o que está a ler?” Por curiosidade, porque para mim as capas de livros são um empecilho às relações humanas, porque afinal o que quer que fosse que eu ia fazer podia esperar, encontrei alguém como eu, alguém que gosta de ler. “Claro”, responde. Uma autora de que eu nunca ouvira falar, nem do seu livro. Para ele também era novidade. Contou-me a história: uma mulher que acordava todos os dias julgando que era criança ainda, com a memória de criança, quando na verdade já era casada, e as dificuldades que isso lhe causava, e ao marido, e ao médico e demais pessoas da sua vida. Se quiseres, passa aí daqui a dois ou três dias e eu empresto-te. Perguntei como arranjava os livros, disse que lhe davam, ou comprava, mas que também já lhe tinham roubado muitos. O amor aos livros, aquele sorriso leve que nem a barba por fazer escondia, o ar de quem poderia estar em casa, no quentinho, sem poluição, sem o passar de pessoas estranhas, apressadas ou indiferentes, sem barulho, o estar num mundo só seu a que mais ninguém tem acesso a menos que traga um livro ao colo, ou ao peito, a familiaridade com que me tratou por tu, e a disponibilidade para me emprestar livros, fizeram com que me esquecesse do resto durante aqueles momentos.

Há muito tempo, na paragem, fotografei a sua casa, a mala de viagem feita e arrumada e o cartão ao lado, bem dobrado. Tudo no sítio. Como quem faz a cama. Mas sem cama e casa e sem tudo. Talvez ainda com muito. Quem tem um livro tem tudo. Talvez até tenha muito. E talvez, agora que mudei de casa, e já vivo menos de malas de viagens e sacos, e consegui finalmente arrumar os livros, seja tempo de pegar nuns quantos, apanhar o 728 após o trabalho, e ir visitá-lo.

28 Fev 2019