Paulo José Miranda h | Artes, Letras e Ideias Uma Asa no AlémContra mim ou nada «Enquanto os outros viviam para ser alguém, para aprenderem uma profissão, um modo de ser no futuro, eu vivia para não deixar de viver, esforçava-me dia a dia para não me matar.» É assim que a escritora do País de Gales, Kelly Chester começa o seu romance «Lutar Contra Mim». Neste livro, singularíssimo, que não é um livro de ficção, mas um testemunho de vida, Chester traça uma narrativa onde nos mostra a sua vida desde a infância (pouco) a sua adolescência (um pouco mais) e a sua idade adulta (quase todo o livro). Viver o dia a dia como quem está no centro de uma guerra civil, «como nos Balcãs», escreve. O livro é publicado em 1999 e além de trazer um testemunho pessoal, faz várias referências ao conflito nos Balcãs, comparando a vida a ser-se violentado na sua própria casa. Aliás, o próprio termo «conflito» é ironizado pela escritora: «Quando leio nos jornais “o conflito nos Balcãs”, lembro-me sempre de como é difícil de vermos a vida como ela é. O pai viola a filha e a mãe esconde os acontecimentos debaixo dos afazeres quotidianos, como se isso fosse o que se espera dela; a miséria dos salários, com quem mal consegue viver, não importa a quem fala deles, porque ninguém vê vidas num discurso parlamentar; há pessoas a quem dói mais tomar comprimidos do que simplesmente deixar-se morrer. “Conflito dos Balcãs”, como se fosse tudo um desacordo universitário, onde ninguém tem mais o que fazer do que imaginar teorias para a origem do universo. Ali, no “conflito dos Balcãs”, morrem pessoas, são violadas, torturadas, assistem à morte dos que amam. Não é um conflito, é uma barbárie. É o inferno.» É claro que Kelly Chester não pretende igualar a sua tragédia pessoal com aquela que é vivida pelo povo dos Balcãs, apenas estabelece uma relação entre a falta de clareza com que olhamos o que se passa lá com aquilo que se passa com ela. Não se trata de comparar dimensões, mas comparar falta de clareza, dificuldade de ver o que se passa. A morte e a tortura de milhares de pessoas não é semelhante ao seu sofrimento, «mas não se ver o que se passa nos Balcãs, não se usarem as palavras adequadas ao que se passa, assemelha-se ao não se ver o que se passa comigo». Kelly Chester teve uma admirável carreira como professora universitária no departamento de psiquiatria da Universidade de Cardiff e durante toda a sua vida tem feito estudos sobre vários distúrbios da «falta de vontade de viver». E aquele que ela identifica como sendo o seu distúrbio diagnostica-o como «incapacidade de ilusão». Escreve: «Para conseguirmos viver e suportar as inúmeras contrariedades da vida, é necessário que o nosso cérebro produza várias substâncias que permitam relevar ou redimensionar essas contrariedades. Substâncias que, numa linguagem pouco técnica, podemos designar por “produtoras de horizontes de sentido”, que a despeito de todas as contrariedades projectam um horizonte melhor. Estamos presos numa cela e projectamos o dia em que vamos sair; estamos numa situação de guerra civil e projectamos o dia em que conseguimos fugir dali. Aqueles que, como eu, não têm esses “produtores de horizonte de sentido” não conseguem ver além do que está a acontecer. E, de modo geral, o que acontece não é bom. Para mim, ou alguém como eu, viver comporta esforços inimagináveis para as pessoas comuns. Pois não é contra as contrariedades que lutamos, mas contra a vontade que temos de desaparecer da vida. Ao não vermos nada adiante, ao não conseguirmos projectar nada de bom adiante, em cada instante, a vontade de desaparecer assume o controlo da existência. Esta, a existência, torna-se uma desistência contínua.» Imaginemos que viver, para Kelly Rachel, é estar continuamente no meio de uma pandemia e não conseguir projectar uma solução ou uma melhoria da situação. Pelo contrário, sentir cada vez mais, à medida que o tempo passa, que «o mal é existir», como escreve a autora. Este salto de uma situação extremamente adversa para «o mal é existir» é devido a uma insuficiência de ilusão. «Toda a projecção é uma ilusão. acreditamos que o que projectamos irá acontecer, que virão dias melhores. Mas isso não é um ponto de vista realista. É um ponto de vista idealista. Quando num determinado acontecimento nada indica haver uma melhoria e ainda assim as pessoas acreditam que vai haver uma alteração para melhor é aquilo a que chamo de “capacidade de ilusão”, que é fundamental para se continuar a existir e talvez a maior invenção do ser humano.» É evidente que estamos perante um distúrbio radical, mas isso não impede que, em contraposição, como Kelly Chester faz neste seu «Lutar Contra Mim», não vejamos o ponto de vista ilusório em que assentamos os pés de cada vez que nos levantamos da cama e fazemos projectos. Como pudemos ler anteriormente, a autora vai ao ponto de afirmar a capacidade de ilusão como a maior invenção do ser humano. Termina o seu livro assim: «A ilusão, que em verdade não existe e se trata de uma invenção, tem um horizonte maior do que a realidade. Sem realidade podemos existir, mas sem ilusão não há vida. Sem gota de ilusão, vejo-me a mim mesma como o inimigo de que me tenho de livrar. Vivo dia a dia contra mim, para que não me acabe.”