Judith Teixeira

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s mulheres sempre tiveram percursos ilegítimos no contexto social quando arrojaram sair dos seus silêncios. Elas sem dúvida manifestam uma força estranha e um requinte extremo, que desafiou a grande farsa das correntes mantidas pelo prestígio dos homens que, em matéria de voluptuosidade, pareceram sempre aquém, e é sempre com espanto que as lemos na sua modernidade, na sua ousadia, no seu vanguardismo, na cor por onde o ser se mantém vivo diante dos caminhos imperiosos da inteligência estéril. Vejamos que um poeta da sua dimensão dispensa o género mas, se não fosse mulher, o genérico da sua mensagem seria muito menos representativo.

Nasceu em 1880, curiosamente no mesmo dia de Virgínia Woolf, 25 de Janeiro, em Viseu. A sua obra é um imenso desfolhar de beleza, erotismo e de uma magistral forma de conceber a língua na construção dessa coisa outra que é a atmosfera onde brilha uma alma. Porém, no seu tempo, tudo lhe fora adverso. Em 1923, quando da rusga do Governador Civil de Lisboa que instaurou uma insurreição pela vontade dos Estudantes Católicos, diga-se, contra a chamada Literatura Dissolvente, cujo propósito era literalmente lançar para a fogueira este registo de coisas que punham em causa os costumes da Nação, com ela iam então António Botto com Sodoma Divinizada, Raúl Leal, e Decadência da própria Judith de Sousa, e tudo seria feito, caso Fernando Pessoa não os defendesse, ou seja, defendesse a legitimidade histórica dessas obras. Chamavam-lhe então «desavergonhada» para não mencionarem o seu nome os bons pensadores da época, que pouco ou nada ligaram também ao interdito de Pessoa.

Em 1927, a poeta sai do País e o seu modernismo, a sua criatividade, a sua intervenção cívica – dirige a revista «Europa» no tempo em que os alvores da Ditadura davam então os primeiros passos. Curioso é que mesmo aqueles que eram seus pares a resolvem esquecer. E ficamos assim, ainda hoje, quase que despojados de uma singular e excelente voz em que a luxúria pareceu ter sido uma afronta, o desejo, um preço a pagar, e o talento, uma qualquer ousadia imperdoável. Se Sá Carneiro se enleia e volteia de brocados carmesins numa voluptuosidade sem par, é maravilhoso sim, mas Judith tem lá dentro o outro, que não raro sofisma ser do mesmo género em alguns dos seus poemas, o que dá azo ainda a mais controvérsia. Mas lembro que alguns poemas de Pessoa insinuam ser de mulher na primeira pessoa, e muito desapercebidamente ninguém pareceu notar tal subtileza: as pessoas vêem sempre condicionadas por aquilo que acham que estão lendo, e não reconhecem a verdadeira leitura poética que é sempre mais vasta nos interstícios.

«Nua», o seu livro choque. A «Capital» faz uma crítica excelente, mas a propaganda está activa, a “Revolução Nacional” varre tudo que lhe pareça vergonhoso. Dizia mesmo o artigo: “«Nua» tem de tudo: espírito, carne – e sonho. Eles revelam, com brilho e com beleza, os estados de alma dum superior espírito de mulher”. A sociedade, essa, omite-lhe o nome, e cruelmente lhe chama «A bailarina cor de sangue», pensando eles que seria opróbrio e, nessa desforra impudica de imundície moralista, dão-lhe paradoxalmente uma bela designação. Mesmo, ou até mesmo, sobretudo Marcelo Caetano, fundador e redactor da Ordem Nova, diz isto: «Arte sem moral nenhuma». Efectivamente, Portugal nunca foi moderno. Levantou-se, sim, a acção republicana naqueles anos dourados em que muitos viram desgraça, para logo se calar, ficando-se pelas suas lendas de bons samaritanos genuinamente morais que é o mesmo que dizer, a grande boutada que hoje escutamos – a ética. Mas ninguém reabilitou com a justiça devida a grande poeta.

«Satânia», outro título inquietante, o nome dela bem como os títulos dos livros talvez anunciem um secreto preconceito muito peculiar no eterno mundo rural português. Seria ela o que todos desconfiavam e não diziam? E se o disse, todos tentaram não ouvir. As feministas do país, agora todo revolto uma outra vez, dão-lhe um espaço breve nas suas enciclopédias. Estas mulheres, não são de facto uma Judith Teixeira, são outras coisas tiradas das bainhas das calças dos homens, que desfilam sem mérito numa suposta e impactante erudição sem brio.

Creio que é a Hora! A hora de fazer lembrar. Passaram-se quarenta e quatro anos e parece que chegámos sem saber aos mesmos patamares de selecto obscurantismo. Andamos ocupados, o que é compreensível, não se dissimula um estado destes apenas com Revoluções, dado que essas, vão e vêm, mas a incapacidade atávica, essa sim, é imóvel, igual, e nem uma aragem faz correr.

Hoje é de novo vinte e cinco de Abril de um ano qualquer e não achei melhor tema do que este. Melhor oferenda de Liberdade! Ela, por tudo o que sei, não está, nem foi consolidada. A Liberdade continua a ser um vínculo, sempre, e para sempre, radicalmente poético. Já não há mais censura mas é como se existisse, essa censura censurável da omissão. Continuaremos pederastas e patriarcais? Muito, e bem para além disso.

 

O MEU CHINÊS

Nos olhos de seda

Traçados em viés;

Tem um ar sensual

O meu chinês…

 

Às vezes

numa ânsia inquietante

que eu não mitigo,

e que me domina,

num sonho de poeta

ou de heroína,

fujo levando

o meu Chinês comigo!

 

E lá vamos!

Nem eu sei

Para que alcovas orientais.

Realizar as horas sensuais….

 

Eu e o meu Chinês

Temos fugido tanta, tanta vez!

 

Inverno-Noite- Hora Inquieta- 1922.

8 Mai 2018