Fotografia | A vida de uma família macaense no fim do século XIX em exposição

Henriqueta e Maria são as filhas de José Vicente Jorge que sorriem na antiga imagem do cartaz da exposição “Casa das Duas Filhas”, que inaugura a 18 de Maio na galeria At Light. Numa velha casa colonial vão estar fotos que falam de memórias e saudades de uma Macau que já lá vai

 

[dropcap]A[/dropcap] “Casa das Duas Filhas – Fotos da Família de José Vicente Jorge” é o nome da exposição que reúne imagens e testemunhos de uma influente família macaense, atravessando várias gerações e contribuindo para melhor entender o território ao longo das épocas, desde meados do século XIX até meados do século XX.

Através da fotobiografia de José Vicente Jorge, cuja família terá chegado a Macau em 1700, as memórias vão sendo contadas nos daguerreótipos guardados por filhos e netos, os mesmos que agora abrem o baú na galeria At Light, no próximo dia 18 de Maio, sábado, pelas 16h.

O lugar da mostra importa, no Pátio do Padre Narciso, atrás do Palácio do Governo, por ser um edifício colonial recuperado que empresta charme ao evento. Mas importa também, por não distar muito da original casa da família, sita na Rua da Penha e há muito desaparecida.

As duas filhas de José Vicente Jorge, Henriqueta e Maria, dão o mote à exposição, a partir da fotografia que junta as irmãs, mães dos primos Pedro Barreiros e Graça Pacheco Jorge, que muito têm feito para não deixar esquecer as histórias da família, nomeadamente através dos livros “A Cozinha de Macau da Casa do meu Avô”, de 1992, e “José Vicente Jorge: Macaense ilustre”, de 2012.

As muitas facetas do avô, intérprete, diplomata, professor de chinês e inglês, entre outras ocupações desta personalidade destacada do território, nascido em 1872 na Freguesia de São Lourenço, em Macau, vão sendo reveladas através do espólio que sobreviveu à sua morte, em 1948, na cidade de Lisboa para onde se mudou no final da Segunda Guerra Mundial. Foi “uma fase bastante difícil para o território”, com o retomar da Guerra Civil Chinesa, de 1946 a 1949, entre comunistas e nacionalistas.

São importantes testemunhos da história local, que contou com momentos relevantes deste homem que iniciou funções no Expediente Sínico em 1890 e esteve destacado em Pequim, ao serviço da diplomacia portuguesa, nos primeiros anos do século XX. Em Macau privou com uma elite de diplomatas, advogados, intelectuais, professores, escritores e poetas, como Camilo Pessanha, que veio a ser seu grande colega e amigo.

Lar perfeito

A casa das duas filhas pretende ser mais do que o legado do pai, a julgar pelo texto que divulga a mostra. É uma casa de família, de crianças, de festas, de brincadeiras, de afectos, de objectos, porque “existe um tipo de amor chamado saudade”, lê-se. A partida para Portugal foi um corte que deixou marcas profundas e sonhos perdidos. Os netos Pedro e Graça preservaram móveis, porcelanas, livros, fotografias, recortes de jornal, receitas culinárias, que têm divulgado “para chegar perto do lar perfeito que ainda existe nos seus corações: Macau”.

Vários são os relatos que ficaram no seio da família. “Algumas destas coisas aconteceram em Macau e outras em Portugal. A vida não é só cheia de alegrias, também há dores e tristezas. Há uma história inesquecível: na década de 1940, as três gerações da família de José Vicente Jorge partiram para Portugal para evitar a guerra, instalando-se em Lisboa. Henriqueta e o marido quiseram banquetear as personalidades locais com um jantar em sua casa. Mas quando a anfitriã apresenta uma iguaria típica da comida macaense, de que toda família se orgulhava, a resposta dos convivas foi: o sabor destes pratos cheira a febre amarela!”.

A vida em Portugal foi particularmente triste para o patriarca, que viria a falecer em 1948, de diabetes e saudades. O velho casarão da Rua da Penha foi vendido nesse ano, e duas décadas mais tarde seria demolido e loteado para dar lugar ao progresso urbanístico. E, no entanto, aos 95 anos de idade, numa casa de repouso em Portugal, Maria continuava a receber visitas da filha e a dizer, numa voz ora infantil, ora lúcida, “eu quero ir para casa”. “Para casa? Ninguém pode tomar conta de si durante vinte e quatro horas. Depois volta a cair!”. Não, “quero voltar para Macau. Macau.”, relata o texto da exposição.

9 Mai 2019

Viagem a partir de uma fotografia

Uma imagem antiga é o pretexto para recordar figuras importantes da história de Macau e o seu mundo antigo. Figuras que fizeram a ponte entre os dois lados da terra. Que se interessaram pelo outro e cruzaram culturas distantes. Vamos à vela, pela memória da descendência da História

[dropcap]P[/dropcap]arte-se de uma fotografia. Um tempo a sépia. O pai no liceu, aos 16 anos, os seus colegas, os professores, um passado vivido apenas por uma memória visual. Mas o sentido de pertença por uma imagem e por um impulso antigo, muito presentes, no dobrar da esquina de uma memória. “Eu cresci com esta fotografia”, afirma António Conceição Júnior, como se aquela recordação não fosse apenas papel, mas o desenrolar de uma vivência real e palpável, com todos os seus sentidos.

“Macau tem uma continuidade, Macau é o fio”, refere Conceição Júnior, “as pessoas apanham o comboio na estação que for.” E continua, “se estão descoladas foi porque não apanharam o resto da viagem”. Estas são as palavras que reflectem sobre o acto contínuo do tempo, com as suas coincidências e factos, sem distinções entre presente e passado.

“Macau tem uma continuidade, Macau é o fio, as pessoas apanham o comboio na estação que for, se estão descoladas foi porque não apanharam o resto da viagem.”

No seu desenrolar, os nomes saltam com toda a sua importância: Pessanha, Mendes, Gomes, Jorge. Os apelidos da biografia de uma cidade a acontecer. As personagens de uma enorme importância para a vida cultural de Macau. Sem esquecer o de Conceição, pai e filho. Todos eles formam o núcleo da espiral de um ciclo de acontecimentos que ocorreram após o simbólico momento congelado no tempo, a fotografia tirada no pátio do Liceu Infante D. Henrique, por um autor desconhecido. Vivia-se a história de Macau e com ela rola esta crónica de coleccionadores.

Momento intensamente vivido

Camilo Pessanha com Silva Mendes, a seu lado, e António da Conceição e Gonzaga Gomes, da mesma altura, atrás de si

O próprio instante da fotografia é incerto. Se a fotobiografia de Camilo Pessanha refere o momento situado em 1921, Conceição Júnior marca-o no ano lectivo de 1925-26, pela referência do seu pai, António fa Conceição, o primeiro à esquerda, nascido em 1910. O poeta de “Clepsidra” morreu no dia 1 de Março de 1926 e os protagonistas têm um ar demasiado veraneante para que a ocasião possa ter ocorrido nesse ano, o ano em que o BNU se mudava para as suas instalações actuais. Talvez seja lógico pensar que a imagem traz o final do ano lectivo anterior, com as taças e os prémios de toda uma época e o início das férias. Mas Macau é sempre um mundo tropical onde tudo é possível.

Por detrás de Camilo está o jovem Luís Gonzaga Gomes. Sentado ao seu lado vemos Manuel da Silva Mendes e do outro lado da mesa dos troféus, no segundo lugar, está José Vicente Jorge, apoiado na cadeira. São eles as referências de uma visita guiada. O que têm em comum? Todos ousaram transpor a barreira da língua e ocupar um ponto na comunidade chinesa, na compreensão do idioma, estabelecendo desse modo ligações profundas com ela, na procura do conhecimento da cultura local. Facto notável numa sociedade colonial pouco receptiva à aceitação de outras formas de assumpção do quotidiano, com a sua zona cristã bem delimitada, que não se aventurava a conhecer o outro lado, na verdadeira acepção da palavra. Ainda hoje assim acontece.

Vicente Jorge (ao centro) do outro lado da mesa

A viagem começa aí, em Camilo Pessanha. Não o poeta excêntrico, que lhe trouxe a fama, mas o advogado, de raro brilhantismo, o juiz e sobretudo o professor de Filosofia, História, Geografia, Português, Literatura e Direito. Admirado pelos alunos, era figura central no mundo cultural, político e cívico da plataforma de Macau, à qual abordou em 1894. Terra de acolhimento onde desde logo tomou posições fundamentais no relacionamento entre portugueses, macaenses e chineses. Com a compreensão do idioma, abandonou desde logo a postura eurocêntrica da maioria dos seus contemporâneos, levando-o desde logo a traduzir, de forma livre, poemas da dinastia Ming (1368 a 1628). Talvez resida aí o rumor dessa poemária que viria a criar mais tarde. Na voz de Conceição Júnior, revivem-se as histórias de Pessanha. As suas casas, na Sidónio Pais, na Praia Grande, actual sede do Banco HSBC, na esquina que sobe para a Sé. Mas, principalmente, o gosto pela arte, que partilha com Silva Mendes e que fortalece toda uma relação de amizade entre os dois. O Palacete da Flora a ir pelos ares com uma colecção rara de que hoje não se conhece o rasto. O espólio de Silva Mendes, o homem que vindo do Porto, em 1900, ainda hoje tem uma presença preponderante na arte do território. Mendes foi o primeiro europeu a coleccionar peças de qualidade com as características da cerâmica de Shek Wan, da região de Cantão, reconhecendo-a como um dos mais refinados exemplos da arte chinesa, encomendando diversas peças durante toda a sua vida, que podem ser vistas nos dias de hoje no Museu de Arte de Macau. E uma ligação ao presente faz-se então por aí.

Juiz multifacetado, professor e reitor do liceu, advogado, magistrado, presidente do Leal Senado, Manuel da Silva Mendes foi um dos intelectuais mais representativos da história de Macau, dedicando-se ainda ao estudo da filosofia taoista e flutuando nos enredos da arte chinesa, como erudito e coleccionador. A colecção valiosíssima de Silva Mendes viria a formar grande parte do importante espólio do Museu Luís de Camões, situado no que é agora a Casa Garden, sede da Fundação Oriente em Macau, que foi instalado, com grande competência e conhecimentos da arte chinesa, por um seu aluno, Luís Gonzaga Gomes, um dos símbolos de Macau, no lugar do diálogo, da harmonia e da tolerância.

Nascido em Macau em 1907, sinólogo fervoroso, Gonzaga Gomes viria a traduzir para chinês “Os Lusíadas contado às crianças”, entre muitas outras obras escritas. Profundo auto-didacta, acabaria por ser professor de língua chinesa, defendendo sempre a importância do seu ensino junto da comunidade portuguesa, facto que raramente teve repercussão. Aí se aprofunda a ligação a António da Conceição, num tempo com todas as cores, no jornal Notícias de Macau, situado no local preciso da actual Tribuna de Macau, a que viria a juntar-se o nome de Deolinda da Conceição, mãe de Conceição Júnior, como a primeira jornalista do território. E as imagens continuam. O Hotel Riviera, os anos a correrem, o Museu Luís de Camões, as peças de Silva Mendes sem rasuras a caminharem para a actualidade e, finalmente, a memória da família de José Vicente Jorge, também um sinólogo e grande coleccionador de arte chinesa, que se viria a mostrar no prelo nas suas “Notas sobre a Arte Chinesa”. As memórias passam ainda pelo seu palacete, por cima do Lilau, também ele repleto de obras de arte, com o seu rico jardim, um espaço vivido por dentro pelo condutor desta viagem.

Uma memória adormecida?

“Há um fenómeno de ruptura com a continuidade histórica, que não tem a ver com a transição, mas sim com os novos migrantes.”

Pelas suas funções de intérpretes, professores e diplomatas, estas personagens da história foram a peça-chave da mediação cultural entre os dois mundos: o português e o chinês, contribuindo para um entendimento, muitas vezes difícil, de forma exemplar. E pergunta-se pelo valor que tens estas memórias? “Têm o valor que as pessoas quiserem encontrar nelas”, responde Conceição Júnior, o homem do leme. “Pessoalmente penso que é uma questão intimista, no sentido de que têm um valor muito subjectivo, na medida em que na vida actual a objectividade tem cifrões”. É nesse idioma do cifrão que se fala da Arte nos tempos que decorrem como se tudo começasse a ser criado agora, onde se ouve sempre o sussurro das indústrias do criar. Conceição Júnior responde: “Isso passa pela força do desconhecimento e pela ausência de memória, uma memória colectiva. Quando não se acede a essa memória, provavelmente animam-se pensando que são as pioneiras de uma coisa que já foi pensada por gerações”. Haverá ligação ao passado, actualmente, numa comunidade tão diversa? Que significado poderão ter estes nomes que passaram pela história de um território sob o cunho português? Haverá importância para outro lado do trampolim, por entre os resquícios da “zona cristã”, nesta Idade de Casino?

António Conceição Júnior aponta: “Há um fenómeno de ruptura com a continuidade histórica, que não tem a ver com a transição, mas sim com os novos migrantes”. Assegurando que “neste momento é de uma imensa importância encontrar pontes entre as comunidades, não só sobre o actual mas também sobre passado”. Porque só podemos saber para onde vamos se soubermos quem fomos, para finalmente sabermos realmente quem somos. Quem somos nós, afinal, as gentes de Macau?

13 Jul 2010