“A Memória da Cidade II” – José Silveira Machado (1918/2018)

“A tempo entrei no tempo,
Sem tempo dele sairei:
Homem moderno,
Antigo serei.
Evito o inferno
Contra tempo, eterno
À paz que visei.
Com mais tempo
Terei tempo:
No fim dos tempos serei
Como quem te salva a tempo.
E, entretanto, durei.”

Vitorino Nemésio

[dropcap]F[/dropcap]ilho das dificuldades, onde os dias nasciam carregados de deveres, José Silveira Machado veio ao mundo a 24 de Outubro de 1918, em Velas, S. Jorge, Açores, a freguesia das freguesias de sentido único, a partida. Direcção, Oriente, destino, Macau.

Foi este o «caminho» de José Silveira Machado o «Professor». Aportou a Macau numa época difícil de transição e contradição – 1933 -, para estudar, “indisciplinado aluno” (?), no Seminário de S. José – «um exílio é um refúgio com uma biblioteca», na opinião de Zia Haider Rahmam -, entre a idílica adolescência e a indesejada vida adulta.

A realização pessoal exige escolhas, sensibilidade e bom senso Concluído o curso do Seminário – um período de possibilidades ilimitadas -, optou pela vida civil , onde acontece viver -, em detrimento da vida eclesiástica.

“Cresceu sem ver o Mundo mas com os olhos postos na vida.”

Homem de pensamento rigoroso, honesto, dinâmico e crítico, criador e bondoso, olhar suave, rosto comprido e magro, boca tensa, era um romântico. Tinha sempre mais dúvidas que certezas, percebia a diferença entre a realidade dos factos e os factos alternativos.

As suas palavras tinham polivalência, ganhavam autonomia, tinha o hábito de apelar em vez de exigir, explicar em vez de ditar.

Não se fechava ao Mundo. Abria-se ao conhecimento. Era uma pessoa capaz de admirar a vanguarda, sem nunca esquecer as tradições. Era uma alma desocupada que não precisava de alinhar em conspirações de ordem estética – era consequente, corajoso -, não como o Dâmaso Salcede d´ “Os Maias”, «balofo e vazio que segue a maioria…, da mais recente tendência».

Tinha um modo próprio de andar – calcorreava a «Cidade» de lés a lés, de maneira a fugir de fantasmas e a perseguir sombras.

Fazia parte da sua geografia sentimental. A alegria de viver estava em descobrir, receber, transmitir, dar – ser autor e actor – e, espectador lúcido e atento.

A sua mundividência «crescia» de um aspecto crucial – pouco ou nada valorizado nos dias de hoje -, o diálogo, aberto, franco, sincero. Os Livros, a Amizade – «é um dos mistérios da vida», e a «Cidade» eram sempre tema para dois dedos de conversa.

Na conjugação do exercício das palavras «mais os conceitos», na boémia nocturna das ideias, jorravam discussões, sempre retrabalhadas pela memória. Lutava ansiosamente contra o pessimismo colectivo, conjugado sempre com um optimismo subjectivo, apesar de alguns dissabores. A fragmentação da identidade de Macau, a perda do ideário da língua e cultura portuguesa e, no abandono que é dado aos seus cidadãos, aos pobres, fracos, exaustos e aos desprotegidos – uma sociedade que apesar de rica se torna pobre (de espírito).

Poesia, prosa e crónica, são marcos na obra de Silveira Machado. Há dois importantes livros – na opinião de simples leitor -, que são uma referência obrigatória na bibliografia macaense. São os casos de «Macau, Mitos & Lendas» (1998) e «O Outro lado da Vida» (2005). Na opinião de Luís Sá Cunha “Na sua obra, ele fez a síntese de dois universos, de duas vivências, das duas metades de Macau”.

São livros em que encontramos experiências vividas, “soprava nele um irresistível vento de poesia”.

«Macau, Mitos & Lendas», são as notas ao programa do Prelúdio da sua Oratória «Amor a Macau» -, para quando a reedição (?). O livro está esgotado há anos e faz falta nos escaparates das livrarias – e, «O Outro Lado da Vida», é o poslúdio da sua obra – é o olhar crítico, contestatário de Silveira Machado, sobre a sociedade de consumo, de extravagâncias, de mercado de dissimulação, “aos que vivem do lado positivo da vida, os abastados, os ricos, os poderosos”. O autor mostra o seu lado generoso, tolerante, humanista, idealista, pensa que “a sua leitura seja motivo para o rebate de consciências e mudança de mentalidade e leve muitos ricos e poderosos a praticar a verdadeira e necessária solidariedade (…) para que, num futuro breve, não sejam tantas as crianças e jovens, tantos os homens e mulheres, a viver do «outro lado da vida» -, a pobreza e a marginalização como o maior défice social da sociedade”.

Foi co-fundador e jornalista do semanário católico «O Clarim». Colaborou ainda na «Voz de Macau», na «Comunidade» – onde assinou vários artigos de grande valor, sobre as indústrias de Macau – e, no «Renascimento» (jornal e revista). Foi correspondente do «Diário da Manhã» e da revista de cinema «Plateia», outra grande paixão. Paixão que se viria a traduzir no guião que escreveu para o 1º filme realizado em Macau – «Caminhos Longos» (1956).

Quanto mais pobre teria sido a literatura macaense, e Macau mais triste e menos Macau, sem José Silveira Machado, um nome incontornável na história recente na «nossa» Cidade. A sua escrita celebra, relembra e revisita Macau «sonhos, desejos, êxitos». A maturidade ensina a aceitar a dor com menos sofrimento e a viver com mais tranquilidade.

Finou-se, como sempre viveu – discretamente -, recolheu-se ao fim da tarde do dia 18 de Novembro de 2007.

A melhor homenagem que se lhe poderia prestar – no meio de tantas outras que se prestaram, seria fastidioso estar a enumerar –, seria editar e reeditar, ler e reler, a sua obra (é preciso saber mostrar que sabemos preservar a memória e a identidade da «Cidade») –, o Homem parte a Obra fica…!


Bibliografia: «Macau, Sentinela do Passado» (1956); «Rio das Pérolas» (1993); «Macau, Mitos & Lendas» (1998); «Duas Instituições Macaenses (1998) – em co-autoria com João Guedes -; «Macau na Memória do Tempo» (2002); « O Outro Lado da Vida» (2005). Coordenou ainda no âmbito da Fundação Macau, a reedição (1996) da obra completa de José dos Santos Ferreira, o «nosso» Adé.

“Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos”

Luís de Camões
25 Out 2018