Escritos ântumos, postumamente

[dropcap]M[/dropcap]as… onde ides? Assim tão lampeiro, ligeiro, com esse riso solto e casquinado, de quem segue adiante, sem lançar, para trás, sequer um olhar de remorsa despedida. Pois, vinde cá, meu tão certo secretário, de que foges? É do bico da pena, das cócegas inquietas, que te escusas, zombeteiro? Mas se já nem é com a pena que vos escrevo. E disso, sim, na verdade tenho pena. Vá, ouvide só, este manso martelar, sincopado, do computador: há tanto que perdesteis a pena leve do voar.

Cansado de ser leito de lágrimas, com que os poetas sempre a pena desafogam os queixumes, querendo deixar cair as penas do lamentos, contornais a enfastiada pena do escrever e arriba, galgando, pondes-te à fresca, em busca de penas com que voar. Tendes razão! Quem não preferiria planar para outros mundos, em que nascer é cousa chocalheira e não o trânsito funéreo da materna sepultura para o surdo destino das sem razões. Sendo assim, vinde, meu secretário: vinde sem medos, que, de uma penada te tiro as penas: hoje acolhereis José Sesisnando, poeta da leveza, cujo pensamento sempre sobe aos mais altos lugares; escritor avesso a pesos e lamentos.

José Sesinando Palla e Carmo, José Sesinando, só, para os leitores cúmplices de humores de galhardia, é um autor, poeta, brincador de línguas, o que lhe quiserdes chamar. É um escritor capaz de depenar a língua, a crítica, a própria linguagem e seus sentidos, para nosso gaúdio, que ali ficamos a admirar o ridículo do bicho, assim, a nu. Garanto-vos que, se penas houverdes, desta vez, será somente a pena não vos ser mostrado tudo o que esta «Obra Perfeitamente Incompleta», ora publicada pela «Tinta da China», na colecção humorística de Ricardo Araújo Pereira, com edição de Luísa Costa Gomes e Abel Barros Baptista, responsável pelo prefácio, que bem faz jus ao livro.

No livro reúne-se a já esgotadíssima «Obra Ântuma», publicada, em 1986, pela «Edições Europa-América» e duas edições de autor: uma com 50 versões do «Soneto já Antigo», de Fernando Pessoa, e outra, composta por 65 variações sobre o poema «Autopsicografia». Nesta secção, aliás, o poeta passa a ser, à vez, um «roedor», um «pecador», um «pescador», um «cobertor», tão só um «senhor», ou um «péssimo actor», uma «estação», um «sabão» ou um «irmão», ou mesmo um malabarista, quando o pastiche vai além da sonoridade e ganha a liberdade acrobática que Sesinando lhe que quer emprestar.

A editora e, ainda bem, comete na edição a prudência da antítese, quase da paraprosdokian, bem explicada por Barros Baptista, no prefácio: E, assim, podemos louvar à «Tinta da China», finalmente, a publicação póstuma da obra ântuma de Sesinando.

O livro, no seu conjunto, é um completo tratado de humor. A primeira parte, «Prolegómenos», inclui uma «Nótula de Abertura», do próprio Sesinando, «Pallavras Prévias», desta feita, da responsabilidade de José Palla e Carmo, além de uma «Advertência» e um «Prefácio», de Archimbaldo Th. Leonardes e a Leonardes Júnior, respectivamente. Este último, aliás, é bastante elucidativo quanto às qualidades de Sesinando: «Serei breve, mas indeciso. José Sesinando parece-me constituir um daqueles raríssimos casos, em Portugal, de autêntico génio.», remetendo de seguida para uma nota de rodapé corroborando a informação prestada: «Cf. Saraiva (não nos recordamos qual deles), O Génio em Portugal, desde as Origens até ao Século XII, Lisboa, sem data, p.9 e última.»

A segunda parte da «Obra Ântuma», «O texto: Prosa» dá conta de verdadeiros tratados reflexivos sobre coisa nenhuma, mas em que se descasca a língua mesmo até ao caroço. Leia-se parte da «erudita comunicação», intitulada «To ser or not to estar», para se compreender, como na medula de um povo, está a sua própria língua:

«[…] Com efeito, como nem toda a gente – muito pelo contrário- consegue ser, os outros devem contentar-se com estar. Nisto (…), a língua portuguesa serve bem o nosso condicionalismo, já que nas outras linguagens — tais a teutónica, angla e a franca – o mesmo verso exprime as duas situações.

Disso decorre que, nessas outras nações, quem está é, e quem é está. Quando alguém bate à porta, a pergunta que vem do interior soa-lhe não «Quem é?», mas sim «Quem está?». Ao telefone, não se pergunta estupidamente: «Está?» (ou «Está lá»); diz-se: «É?» (ou «É lá?», ou ainda, com inflexão caucionante, «Eh, lá».

Por sua vez( e diga-se entre parênteses que estas investigações histórico-linguísticas são apaixonantes – e podemos dizê-lo sem qualquer pejo entre parênteses, já que não é por isso que nos caem os parênteses na lama), o uso do «É lá» em vez do está lá» motivou que, em vez da palavra e do conceito de raiz portuguesa estalagem ( está-lá-gem, que por sua vez era a contracção de está- lá-gente), se fala nessas outras áreas idiomáticas de elagem ( é-la-gem ou he-lá-gem, de é-la-gem, de é-lá-gem ou eh-lá, gente!). Nessas outras paragens, portanto, o estalajadeiro, ou melhor, o eladeiro, vai para a porta saudar as gentes passantes para as angariar como hóspedes; não vai estalá-las, como entre nós, mas sim éla-las – em francês héler, em inglês to hail, em alemão heilen, em brasileiro alô.»

A «Obra Ântuma», além da prosa inclui outra secção, «Texto: Poesia», com poemas «inexperimentais», poéticas pastiches ou de desfrute jubiloso, jogos, esquemas, «palavras escruzadas». Não, meu certo secretário, não são escusadas nunca, que, como diz Abel Barros Baptista, no prefácio que introduz o livro: o leitor daqui «pode colher a lição máxima e muito compensadora, ao aprender que a razão fundamental para compor escritos assim é a própria e também fundamental possibilidade de compor escritos assim: trata-se muito radicalmente de um exercício de liberdade.» A paródia com a língua é, então, uma necessidade, uma inevitabilidade, porque, lá está, a poesia e as suas palavras põem-se a jeito e toda a gente vê que estavam mesmo a pedi-las.

Entre estas duas secções, existe um «interfácio», porque afinal esta obra é de poesia, de prosa, mas também, de teoria literária, crítica, análise linguística e textual, e mais o que se quiser que a língua consiga prever e conter, porque não há uso da linguagem que não esteja à partida armadilhado. De seguida, completa-se a obra com um posfácio e variadíssimos «A-Nexos», com testes, entrevistas, notas, opiniões da crítica, que constituem um relevante e fundamental paratexto, em torno da escrita de Sesinando e da complexidade da sua obra. Neste ponto fundamental, fica o leitor a saber algo sobre os «ascendentes literários portugueses de José Sesinando»: «Quanto a influências portuguesas, são visíveis as de Almada, Castelo Branco, Chaves.», além de considerações críticas acerca da sua obra: ««Cadência fortemente sugestiva, encadeamento complexo das imagens, autêntico sortilégio verbal, riqueza expressiva reveladora de uma vincada personalidade de creador — nada disso, infelizmente, se encontra na obra de José Sesinando.»» Resumindo, se queremos saber o que é a crítica, a poesia, a literatura e as tretas que as letras nos pregam, é ler, de lápis na mão, os escritos que nos deixou Sesinando e o seu heterónimo José Palla e Carmo ou vice versa.

Que dizeis, meu tão certo secretário? Vindes agradecer-me por não depositar aqui as consabidas e costumeiras penas do lamento? Que te sentis já com as penas do voar, pelos trechos de José Sesinando que vos fui confiando? Mas, que cenho é esse carregado com que me olhais? Que preferíeis que só aqui tivesse só alinhavado citações, sem que me pusesse eu, também, tão sem graça, com piscadelas de olho à chalaça e ao trocadilho. Olha, que quereis que vos diga… Pois temos pena.

José Sesinando, Obra Perfeitamente Incompleta, Lisboa, Tinta da China, 2018</strong
20 Mai 2019