José Dias, arquitecto e ex-funcionário do Instituto da Habitação: “Corrupção começa nas obras públicas”

Chegou a Macau em 1990 e trabalhou até 2008 no Instituto de Habitação. O arquitecto José Dias lamenta que a qualidade das habitações públicas tenha piorado, sobretudo ao nível da área reduzida dos apartamentos. Em relação ao campus da Universidade de Macau, José Dias defende que o projecto está longe de ser moderno, além das fragilidades ao nível de esgotos, água e electricidade

[dropcap]F[/dropcap]alou do ambiente artificial que existe em Macau. Quando aqui chegou, alguma vez pensou que o território iria desenvolver-se desta maneira, ou que os arquitectos teriam de trabalhar, na sua maioria, com este tipo de ambiente artificial?
Estava em Moçambique e recebi uma oferta para trabalhar em Macau. Nessa altura a presença portuguesa era mais acentuada. Não é que não se soubesse o que ia acontecer. E depois da transição as coisas mudaram instantaneamente. Lembro-me de ter alugado um apartamento que estava à venda por 500 mil patacas, um T4. Em 2000 a casa valia uns quatro ou cinco milhões de patacas. É curioso que tudo isso se está agora a debater. Hong Kong está, neste momento, a debater a injustiça dos ricos elevarem os preços das rendas e pede-se que o Governo interfira, porque pode interferir, controlar o crescimento. Isto nasce do sistema democrático, que é livre, mas depois verificamos que a liberdade é fictícia, porque é livre à custa dos que estão bem instalados e que até fizeram os seus negócios e se sacrificaram, mas são ricos. Há outros que não o são e cada vez têm menos possibilidades.

Em Hong Kong há também o debate em torno da dimensão reduzida dos apartamentos, e há cada vez mais pessoas a viver em gaiolas. ade levarem os preços das rendas e pede-se que o Governo interfira, porque o Governo. Acredita que o mesmo pode acontecer em Macau?
Já existe esse problema. Há muita pouca racionalização, tanto em Hong Kong como em Macau, no que diz respeito ao crescimento. Não há controlo deliberado, age-se por emergência e não há um plano que controle o desenvolvimento do jogo, por exemplo.

FOTO: Sofia Mota

Tem alguma expectativas positivas em relação aos novos aterros? Acredita que poderá trazer algum desenvolvimento sustentável?
Vai acontecer o mesmo que já aconteceu: tudo começa por estar regularizado e depois começa a ser empolado. Isso tudo vai diminuir a disponibilidade de área livre. Em primeiro lugar começam por ocupar o mar, mas nunca sabemos até onde vai esta tentação, e há uma perspectiva de agravamento. As coisas não vão mudar e podem até agravar-se, porque vai permitir-se mais população, e os mesmos espaços de Macau vão ser ocupados pelo dobro das pessoas, e isso tem consequências imprevisíveis. Macau é uma cidade com muitas fragilidades e a construção em altura não está a ser ponderada devidamente. É um paraíso artificial, digamos assim.

Em que sentido?
Estamos constantemente sujeitos a surpresas. Veja isto [referindo-se ao campus da Universidade de Macau]. É um quilómetro quadrado entregue a Macau, mas aparentemente, porque está a ser manipulado pela China. Não se percebe, porque se as pessoas tivessem mais discernimento, fariam com que isto tivesse uma maior apetência. [Macau] é um tesouro que se vai extinguir, como Hong Kong.

Considera então que Macau vai desaparecer.
O mais natural é que seja absorvido, porque são apenas 700 mil pessoas perante mais de um bilião de pessoas [a residir na China]. Isto não é nada e desaparece, de um momento para o outro. Basta uma perspectiva diferente, um plano de acção diferente para se extinguir, pura e simplesmente.

Refere-se também à extinção da cultura e do património?
Sim, com prejuízo para a China. Portugal é a Europa e para a China é um relacionamento fácil. Podemos ficar num cantinho a pensar em Macau, mas é uma coisa temporária. Das duas uma: ou há uma perspectiva criativa, optimista, ou então há uma perda de toda a identidade criada.

Ainda sobre a altura dos edifícios. O Governo português soube travar muitas das situações que o Governo chinês não está a conseguir travar?
Penso que não. A China tem de intervir para que se cumpra a Lei Básica, porque entregar passivamente [projectos] a novos profissionais sem assegurar a qualidade da intervenção é um pouco perigoso. Refiro-me a questões técnicas e à competência profissional, que é preciso salvaguardar. Não houve nenhuma intervenção de Macau neste projecto, por exemplo [referindo-se ao campus da Universidade de Macau]. 

Lamenta que este campus…
Não seja mais moderno. Não se vincula à modernidade, na sua linguagem é um projecto neoclássico. Mas fundamental seria o respeito pelas regras da construção, sobretudo ao nível do fornecimento de água, esgotos e electricidade. São coisas fáceis de fazer se houver uma fiscalização íntegra.

Voltemos à sua vinda para Macau. Foi convidado pelo Instituto da Habitação e acompanhou o processo de construção de habitações públicas.
Habitação económica, sobretudo.

Comparando essa altura com a actual, acha que…
Agravou-se a qualidade das habitações. O espaço foi reduzido e hoje é possível ocupar uma sala se estendermos os dois braços. Na altura, havia uma lei portuguesa, já ultrapassada, que estabelecia as áreas, mas esse decreto-lei foi alterado, para pior, e as áreas foram diminuídas. Havia um risco de manipulação que se agravou depois da transferência de soberania e não há nenhuma perspectiva de melhoria da habitação.

Posso concluir que não lhe agrada o empreendimento de Seac Pai Van.
É pior em termos de área. Mas isto também tem o consentimento das pessoas, porque a população em geral não tem uma consciência. Mas os que acompanham as questões da Administração Pública sabem. E não se perspectiva nenhuma melhoria das condições. Aqui [no campus da UM], por exemplo, estamos numa criação nova. Há espaço desafogado, mas se formos ver as habitações lá dentro, não têm, por exemplo, sifões nas casas de banho, e isso leva a que haja maus cheiros.

A qualidade da construção deste campus tem sido, aliás, bastante questionada. Poderia ter-se feito muito melhor?
É evidente, sobretudo nestes aspectos que podem ser subvertidos.

Quais eram as directrizes para a construção de habitação pública quando chegou a Macau? Actualmente, há muitas queixas sobre o planeamento do Governo a esse nível. Na altura, esse planeamento era melhor?
Era, simplesmente porque havia menos procura. Era mais fácil dominar a situação e o corrupto não intervinha, ficava calado na sua secretária. As ofertas em termos de corrupção são sempre feitas na altura de [elaboração do projecto].

Observou casos em concreto?
Nunca observei nenhum caso porque sempre que via alguma situação que estava contra a lei eu não aprovava, chamava a atenção e mandava alterar. A corrupção não é facilmente visível, e começa logo nas obras públicas, que não fazem o controlo do projecto. Vejo o projecto, corrijo o que está errado e segue, mas ele não vai ser feito como está, vai ser alterado e é aí que se dá a corrupção. O construtor alinha com as obras públicas e arranja maneira de subverter a situação. Mas isso acontece em todas as áreas.

Há uma crítica constante em relação ao funcionamento das obras públicas. Acredita que algo pode mudar ao nível da celeridade de aprovação de projectos?
É sempre possível, e isso começa nas hierarquias. Se há fenómenos exteriores que denunciam situações extremamente graves, as pessoas entram em pânico e tomam medidas. Ninguém faz a denúncia porque é lesado por isso. Esta é uma situação generalizada. Macau e Hong Kong sofrem as consequências de uma alta pressão da China, a que esta está sujeita também. A China alterou-se profundamente nos últimos anos e o que acontece é que está sob alta pressão de 1.4 bilião de pessoas.

FOTO: Sofia Margarida Mota

Como era ser arquitecto na altura em que chegou? Apesar de ter estado na Função Pública, fazer arquitectura era mais desafiante?
Claro. O arquitecto português vem de fora e vem com uma cultura e experiência determinada. Alguns primam pela isenção e há outros que aproveitam as oportunidades de singrarem e ganharem mais dinheiro. Isso agravou-se desde essa altura para cá e o arquitecto passou a ter menos influência. Ainda agora houve uma exposição sobre o trabalho de José Maneiras, e ele seguiu as regras da escola do Porto, e procurou fazer o melhor possível dentro das suas possibilidades. Mas teve de enfrentar desafios, nomeadamente de quererem alterar coisas nos seus projectos indevidamente. Mas isso não quer dizer que as novas gerações sejam piores.

Actualmente é difícil fazer arquitectura de autor, fora destes grandes projectos ligados ao jogo?
É difícil intervir quando já estão estabilizados certos núcleos. Há uma série de equipas que trabalham e que são independentes e que têm fornecimento de trabalho de forma regular. E essas equipas são sempre as mesmas, as que se estabilizaram e encontraram formas de sobreviver. Falo do Bruno Soares, Maneiras, Carlos Marreiros, o Rui Leão e a esposa. Cada vez há menos construção mas, por outro lado, isso não é bem assim, porque ela surge pelos novos aterros ou pelas alterações que são solicitadas. Agora solicitei junto das obras públicas um cartão para exercer a actividade, e tenho esse cartão, mas até agora procurei trabalho e tenho tido alguma dificuldade. 

Tem, portanto, vontade de regressar. Do que tem mais saudades?
Talvez agora nesta altura fosse mais aliciante fazer acompanhamento de obra. Há sempre inovações e realizações no processo de construção. 

Considera que faltou planeamento para o futuro, ao nível de habitação pública, tendo em conta o crescimento populacional que se verificou em Macau?
Está em curso a construção dos novos aterros, sobretudo o mais importante para a habitação pública [zona A]. Isso vai estabilizar e proporcionar mais habitação económica, mas penso que este assunto poderia ser resolvido de outra maneira, negociando a remodelação dos edifícios no chamado casco velho, ou zona antiga da cidade. Há uma comissão que regula essa intervenção, mas penso que é pouco eficaz e não se tem feito quase nada para a reabilitação da construção antiga.

Que projectos da sua carreira destaca?
Fiz sobretudo muita obra em Moçambique, onde nasci, em Nampula, e também Maput e Lourenço Marques. Aliás, a minha última obra foi aí, com um projecto de nove habitações de rés-do-chão e primeiro andar.

Era mais fácil fazer arquitectura nas ex-colónias?
Claro que era, mas não havia muito trabalho a fazer. Este trabalho foi pedido por um serviço de manutenção de estradas. Em Nampula construí alguns edifícios em altura, mas apenas com três andares.

Precisava de um novo desafio na sua carreira, e foi por isso que aceitou Macau?
Sim, estava tudo muito paralisado e as condições de manutenção não eram fáceis.

A Associação de Arquitectos de Macau e outras entidades têm feito o suficiente para preservar a memória da arquitectura portuguesa em Macau?
Deve-se salvaguardar, de uma forma geral, os empreendimentos e chegou a fazer-se algo sobre o trabalho de Manuel Vicente, e agora sobre José Maneiras. É sempre possível fazer um levantamento urbano. Pode-se sempre fazer mais alguma coisa. Cheguei a escrever sobre a [importância] da intervenção e preservação no casco velho [zona antiga da península].

8 Mai 2018