Ecologia das luzes

Ferry, Jean Luc, A Nova Ordem Ecológica, a  Árvore, o Animal e o Homem, Edições Asa, Porto, 1993.
Descritores: Ecologia, Iluminismo, Kant, Rousseau, Fichte, Humanismo, Imanência, Transcendência, 207 p.: 22 cm, ISBN: 972-41-1297-7.
Cota: 574(384999.1)

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ntes de mais esta reflexão de Luc Ferry denota uma inesperada coragem na cultura contemporânea para enfrentar as formas de ecologismo radical que na maior parte das vezes estão associadas a críticas não menos radicais da Modernidade. A partir de uma definição muito clara e equilibrada dos seus pressupostos ideológicos, que mergulham em última instância nas fontes do humanismo iluminista e nas ideias de pacto social, ou seja em Rousseau, Kant e Fichte, entre outros autores, Luc Ferry enfrenta alguns dos mitos da cultura contemporânea. O radicalismo ecologista e as críticas mais ferozes à modernidade, mesmo quando não o confessam, evidenciam um estranho sentimento de nostalgia pelas formas de cultura pré modernas, quer dizer pelo sagrado, pelo comunitário, pelo holismo. O humanismo e o individualismo modernos são os inimigos deste saudosismo pré moderno.

Uma das tendências dos epígonos da soi disant pós-modernidade ecologista consiste em atribuir ao mundo animal e ao mundo vegetal uma dignidade equivalente à dignidade do homem. E essa deriva vai ao ponto de conferir aos animais e plantas um estatuto jurídico equivalente. Ora se os animais e as  plantas podem ser sujeitos e objectos do Direito, como chegam a preconizar alguns radicais, e isso em nome de um hipotético direito biocêntrico, será que poderão, também, ser processados e punidos por decisão judicial? Claro que sim. E não é de agora. Luc Ferry oferece-nos o inventário de uma panóplia de casos em que os animais foram levados a tribunal no passado, em nome do facto de serem, tal como os humanos, criaturas de Deus.

Como o autor salienta com ironia “tentando fazer uso da máscara pós-moderna, essa visão mística do mundo animal e botânico já é antiga e passou por vários ciclos, desde as sacralidades mais antigas”. Ora veja-se a título de exemplo:

“Em 1587, os habitantes de um vilarejo francês iniciam junto a um juizado episcopal um processo contra uma colónia de gorgulhos que estava atacando os vinhedos. Os camponeses solicitam ao «reverendo senhor e vigário geral de Maurienne» que se digne a prescrever as medidas convenientes para aplacar a cólera divina e a proceder dentro das regras, «por intermédio da excomunhão ou qualquer outra censura apropriada» para alcançar a expulsão definitiva dos insectos. (…) Algumas décadas antes, um processo semelhante havia terminado com a vitória dos insectos, defendidos por um advogado escolhido para eles pelo juizado episcopal. «Este último, usando como argumento o fato de os animais, criados por Deus, possuírem os mesmos direitos que os homens de se alimentarem de vegetais, recusara-se a excomungar os besouros, limitando-se a prescrever rezas públicas aos infelizes habitantes, intimados a se arrependerem sinceramente de seus pecados e a invocar a misericórdia divina», … e o pagamento imediato do dízimo, é claro” (Luc Ferry)

O autor mostra de modo muito sagaz e culto que sob a capa de crítica ou mesmo condenação da modernidade, o que os novos ideólogos pretendem é o regresso a um tempo anterior, quando havia desigualdades, hierarquias, descriminações e quando sobretudo ainda não tinha triunfado este reino dos direitos humanos e das liberdades, do contrato social que estipula igualdade de dignidade e de estatuto perante a lei. E sublinhe-se que é de uma lei universal que estamos a falar.

Sabe-se em contrapartida que as metáforas naturalistas e eventualmente orgânicas exprimem sempre posições anti-modernas. E Luc Ferry leva-nos a ver o contexto intelectual em que a Alemanha nazi preparou as primeiras leis sobre a protecção dos animais (1933) e da natureza em geral (1935). É sempre muito elucidativo o modo como o autor articula as reivindicações de um “contrato natural” com sentimentos claramente anti-modernos senão mesmo anti-democráticos simplesmente. A modernidade, a democracia, assim como o contrato social que delas decorre é como se sabe constitutivamente artificial. É esta artificialidade, assim como a secularização que ela exige, que incomoda os saudosistas da pré modernidade, seja ela qual for.

Mais alguns exemplos ilustrativos:

“Primeiramente, com base na petição apresentada pelos habitantes que sofrem os danos, averigua-se os prejuízos que tais animais causaram ou estão em vias de causar e, com a informação obtida,  juiz eclesiástico nomeia um curador para os animais, que se apresentará em juízo por procuração e deduzirá todas as suas razões, e os defenderá contra os habitantes que qureiam fazê-los deixar o lugar onde estão; e consideradas e vistas as razões de uma e de outra parte, o juiz lavra a sentença”. (…) “Houve até mesmo em Marselha uma excomunhão de golfinhos que obstruíam o porto e o tornavam impraticável”. (…) “Na ocasião do processo dos escaravelhos de Coire, o juiz, constatando por sua vez que sua citação para comparecimento continuava sem efeito, considerou que não devia tratar com rigor os animais, dadas sua pouca idade e a exiguidade de seus corpos”. (…) “No processo das sanguessugas de Berna, o bispo, temendo que elas tentassem escapar da corte, mandou capturar alguns exemplares para que fossem postos fisicamente na presença do tribunal.  Feito isso, ordenou que se advertissem as ditas sanguessugas, tanto as que estarão presentes quanto as ausentes, de que devem abandonar os locais que temerariamente invadiram e se retirar para onde sejam incapazes de prejudicar, concedendo-lhes para tanto três breves prazos de um dia cada (…) e estabelecendo a cláusula de que passado esse prazo elas incorrerão na maldição de Deus e de sua corte celeste.  E para testemunhar a seriedade da notificação, as sanguessugas designadas pela corte foram executadas imediatamente depois de ouvirem a reprimenda!” (Luc Ferry)

Alguns ecologistas contemporâneos não andam muito longe por vezes de posições aparentadas sobretudo quando a sua ideologia é reforçada por um anti-humanismo primário.

De facto é intrigante o fundamentalismo de pessoas que se batem por um direito das árvores, e das montanhas, quando muitas vezes se mostram insensíveis aos direitos humanos em particular o direito à liberdade de inovação e progresso. Em vez de um “contrato social” alguns radicais apelam hoje a um “contrato natural”. A obra de Luc Ferry compreende as aspirações razoáveis dos movimentos ecologistas conquanto estes não ponham em causa a democracia, a liberdade e o progresso científico e tecnológico.

Na maior parte dos casos é a aversão ao progresso e a nostalgia  pelas sociedade holistas e pré-modernas que animam o integrismo ecologista.

Em momento algum Luc Ferry se mostra insensível relativamente tanto ao mundo animal como à natureza em geral e a sua posição de base é de crítica insofismável relativamente ao antropocentrismo cartesiano com a concomitante redução mecânica da vida animal, mostrando-se pelo contrário favorável, sem ambiguidades, ao reconhecimento do animal como ser sensível na linha de resto de Maupertuis e Condillac. Pertinente é a todos os títulos a análise da diferença profunda entre uma ecologia romântica e uma ecologia das luzes. Claro que Luc Ferry toma partido pelas luzes vislumbrando aí a fonte da resistência contemporânea humanista, contratualista e democrática ao retorno da barbárie, que na história muitas vezes aparece com roupagens, na aparência, progressistas.

Breve apontamento Biográfico e Bibliográfico

Luc Ferry nasceu a 1 de Janeiro de 1951 em Colombes no departamento de Hauts-de-Seine, em França, é professor de filosofia política na Sorbonne e foi Ministro da Educação Nacional, de 2002 a 2004, sob o governo de Jean-Pierre Raffarin. Com um último volume publicado em colaboração com Alain Renaut, Luc Ferry publicou entre 1984 e 1985, Filosofia Política, em 3 volumes; a que se seguiu ainda em 1985, O Pensamento 68. Ensaio Sobre o Anti Humanismo Contemporâneo, em colaboração com Alain Renaut; ainda em colaboração com Alain Renaut publicou em 1988 Heidegger e os Modernos. Em 1990, publicou a solo a obra Homo Aestheticus. A Invenção do Gosto na Idade da Democracia. Ainda a solo A Nova Ordem Ecológica que analisamos aqui foi publicada em 1992. Depois de um intervalo maior o autor publicou em 1996 O Homem Deus ou o Sentido da Vida. E em 1998 publicou A Sabedoria dos Modernos, agora em colaboração com André Comte-Sponville. Continua a publicar e o último livro data de 2016 e intitula-se Sept Façons d’Être Heureux.

10 Nov 2016