Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA afinadora de perguntas [dropcap]N[/dropcap]a semana passada vimos aqui o segundo e último livro da escritora irlandesa Jane Mcgrade, «Desde Que Morrem Os Homens», mas o seu primeiro livro, «Aquele que Vai Para Escritor», de 1949, não é menos arrebatador. Neste seu livro, a escritora começa de um modo «mcgradiana» a destruição da literatura: «À minha volta, quase ninguém lê os livros que me interessam. Não importa que sejam as pessoas com quem falo num jantar ou aquelas com quem converso na universidade. Os livros que me importam não importam a ninguém. E do mesmo modo que acontece comigo, assim imagino que aconteça com outros. Assim, antes de se pensar em tornar-se escritor, deve ter-se consciência de quem ninguém se importa com isso. “Isso” é o que se escreve. Porque a escrita tal como a entendo não é natural. É natural o relato de acontecimentos, o testemunho de episódios, a criação de vidas tão longe da vida que nos fascina ou ainda a cópia dos dias que de tão perto e tão vazios são como os nossos. Isso, sim, é natural. Mas a escrita que abre feridas na superfície da consciência, que mostra falhas da existência, que põe em causa o próprio acto de escrever e de pensar não é natural e não importa às pessoas. Talvez um dia se consiga provar que ou esses livros são os fundamentais ou esses livros são perniciosos, não apenas contra-natura, mas que nos afastam do melhor de nós. Até lá, continuemos a escrever com a crença que melhor nos couber, sem tirar os olhos do horizonte do desinteresse alheio.» Logo de início Jane Mcgrade larga as redes do seu brilhante pessimismo sem qualquer contemplação com o leitor. Põe não só a si mesma em causa, mas também o livro que começa a escrever. No fundo, e ao longo do livro, soa omnipresente o não se saber nada do que estamos a fazer quando escrevemos. E este não saber nada não é apenas em relação à arte da escrita, mas a relação da escrita com o mais profundo da existência. Escreve à página 18: «De onde vem a ideia de que a literatura é algo de bom para a existência? Como sabemos isso? Ou talvez mais correctamente, como podemos saber isso? Será a literatura melhor para a existência do que nadar todos os dias ou correr atrás de uma bola num campo verde junto com outras pessoas?» Aquilo que importa a Mcgrade – já o tínhamos visto na semana passada com a questão da origem e do impulso para o suicídio – não é dar respostas, mas formular perguntas o mais certeiro que lhe for capaz. Escreve: «Afinar perguntas não é a mais nobre das actividades, mas é a mais nobre das minhas.» (p. 29) Estamos diante de um texto pequeno, 78 páginas, bem menor que «Desde Que Morrem Os Homens». E na página 32 surge esta frase enigmática: «Todo aquele que escreve faz o quê? Imagine-se que uma criança pergunta a uma escritora o que é que ela faz na vida e que a escritora lhe responde que escreve livros. Não satisfeita, e não o poderia estar, a criança insiste em querer saber o que é isso de escrever livros. Ela, a criança, não quer saber o que é um livro, mas o que é escrever um. Isto é, ela quer saber o que é que eu faço. E não lhe sei responder. Posso dizer muitas coisas. E digo muitas coisas. Mas não lhe sei responder.» Por conseguinte, para Jane Mcgrade a actividade de escrever não é apenas obscura em relação aos efeitos na existência, mas também é obscura na sua compreensão. «Não é só aquele que vai para escritor que desconhece ao que vai, também o escritor desconhece onde está.» (p. 33) Jane Mcgrade tinha um fascínio enorme por Nietzsche, e faz uma citação à página 40, de uma passagem de «Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral»: «O descurar do individual e do real dá-nos o conceito, do mesmo modo que nos dá a forma, enquanto a natureza não conhece quaisquer formas e conceitos e, portanto, quaisquer géneros, mas apenas um X para nós inacessível e indefinível. Portanto, também a nossa posição entre indivíduo e género é antropomórfica e não provém da essência das coisas […].» O que pretende Mcgrade ao trazer este texto de Nietzsche, se há nele um elogio da metáfora e uma negação do conceito? Há em todo este texto um desprezo pela verdade. Neste texto, o filósofo alemão propõe a metáfora como caminho, não para o conhecimento mas para a nossa relação com a vida, ao invés do conceito, que nunca pode abraçar a vida. Mas veja-se aonde Mcgrade nos quer levar, à página 42: «Ver o conceito como uma grosa que apara diferenças, quando tudo na natureza é desigual, talvez seja a maior evidência de que a literatura nos pode servir bem a existência.» Ou seja, a escritora irlandesa recorre a esse texto de Nietzsche não como «prova» de defesa da literatura, mas como «possibilidade» de defesa. Uma vez mais, não há respostas, apenas uma contínua afinação da pergunta. Termino esta viagem ao primeiro livro de Jane Mcgrade com a última frase do livro, absolutamente luminosa: «Antes de caminhardes para escritor, lembrai-vos de que quando se escreve não se lê.”
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA origem do impulso para o suicídio [dropcap]J[/dropcap]ane Mcgrade, escritora irlandesa nascida em Dublin em 1921 e falecida em 1962 por afogamento ao largo da ilha de Lesbos, escreveu um fascinante livro chamado «Desde Que Morrem Os Homens», publicado em 1957. Não é um romance nem um ensaio, antes pelo contrário. Trata-se de um texto apátrida, de difícil categorização, onde se procura a origem da morte do humano e o seu impulso para o suicídio. O livro não conta uma história, mas as suas investigações também não têm fundamentação científica, apenas literária. O livro começa assim: «Vários são os textos antigos que nos relatam um tempo em que ainda não se morria. Um tempo em que não havia humanidade. Pois quer se trate de Adão e Eva, quer se trate dos Titãs, não podemos encontrar aí as nossas origens, ainda que os textos antigos assim o reclamem. Mas pode aquele que não morre passar a morrer? Pode um imortal passar a mortal? Nós somos aqueles que caíram? Somos realmente os filhos de um erro?» Percebemos de imediato que vamos entrar num mundo estranho. Perguntar pela origem do humano, não através da ciência ou da religião, mas através da literatura, isto é, pelo relato, pelos textos escritos. Para Jane Mcgrade esses textos não são de somenos importância. Escreve à página 17: «Porque escrevemos desde o início dos tempos que a origem da vida humana reside num erro? A vida humana começa com uma expulsão. Depois da expulsão, a existência. Dito assim, parece uma metáfora do próprio nascimento. Será que é disso e só disso que se trata, de uma metáfora do momento em que nos desligamos das entranhas da mãe e caímos no mundo? Ou há algo de real, neste ver e relatar a existência como uma expulsão? A saber, trata-se realmente do relato do que aconteceu, seja lá quem nos expulsou, de onde ou porquê? E estes relatos não terão produzido afectos que se tornaram reais, tão reais como as palavras que influenciaram o mundo?» O que está em causa para a escritora é a ligação dos textos, dos relatos, à origem da existência. Escreve à página 76: «Ainda que não existam factos que se relacionem directamente com os textos, de algum modo os textos têm de se relacionar com a origem da nossa existência, isto é, com a origem da nossa morte, de começarmos a morrer. Há um momento em que começamos a morrer e os textos dão-nos conta disso. Passou a ser verdade ou passámos a ter consciência disso?» Esta distinção é fundamental para Mcgrade. «Desde Que Morrem Os Homens» procura saber de onde vem a ideia de um tempo antes da morte. Ideia essa que se liga a uma outra: a de a existência ser uma culpa, uma expiação, um erro. «Fizemos mal, ou o mal, e passámos a existir.» (p. 45) A existência como a invenção do mal é uma ideia que inaugura a própria escrita. Os primeiros textos estão marcados com esta distinção entre um antes, a que já não podemos voltar, e um agora que será para sempre o arrastar de um erro cometido no passado. E mesmo que não tenha sido verdade – alguma vez o poderemos saber? –, as palavras passaram a ser vividas como se tudo tivesse sido verdade, fazendo com que isso passasse a fazer parte da própria existência. É na segunda parte do livro que a questão do suicídio começa a aparecer como horizonte do questionamento. À página 113 de «Desde Que Morrem Os Homens», escreve: «Não é certo que o impulso para o suicídio que algumas pessoas têm não advenha de uma estranha ligação com a nossa origem. Essas pessoas estão mais expostas à culpa, ao erro que sentem que são do que as outras. De algum modo, estas pessoas são mais antigas. Um dia ainda teremos instrumentos que nos permitam investigar estes sentimentos, que nos trarão à tona o mistério da nossa origem. Então veremos que a existência e o suicídio estão intimamente interligados na sua essência.» Jane Mcgrade, ela mesma atraída ao longo da vida pela ideia de suicídio – há quem defenda que o seu afogamento foi suicídio –, entendia este misterioso impulso como um inapelável fazer-se sentir do tempo original da culpa de expulsão. Embora também apareça escrito quase no final do livro, página 177: «Talvez o impulso para o suicídio seja no fundo a crença de que só assim poderemos voltar ao paraíso. A crença de que há que recusar a existência com as próprias mãos de modo a poder ganhar o que ela nos fez perder.» Podemos dizer, sem fugir à verdade, que a pergunta pela origem da existência é também a pergunta pelo impulso para o suicídio. Para Jane Mcgrade, não é possível perguntar pelo primeiro tema sem ficar obcecado pelo segundo. A escritora irlandesa deixou-nos um livro estranho, por onde quer que se leia, e que tem tido ao longo do tempo muito poucos leitores. Talvez o século XXI venha a operar uma mudança nesta tendência.