Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA amante de David Bowie e de Iggy Pop [dropcap]N[/dropcap]os últimos anos da década de 70 do século passado, Claudia Schneider foi amante de David Bowie e de Iggy Pop, em Berlim. O seu livro «Desentidade», centrado nesse tempo, não trata apenas disso. É um livro que põe em ferida a identidade humana. Repare-se como começa o livro: «Como todas as pessoas, nenhum de nós tinha identidade e procurávamos nos outros o que nos faltava. Fosse com quem fosse, nunca se atingia ou alcançava uma identidade. Nem somente comigo. Fui tantas vezes mais homem com Iggy e com David do que fui mulher com outros. Fui também muito mais mulher com qualquer um deles do que fui com outros. O que nunca fui foi igual. Igual a quê? A quem? Nós somos tão diferentes uns dos outros, e de nós mesmos, quanto a música que ouvimos.» O livro leva-nos numa viagem através da música e da vida da jovem Claudia, que desde os cinco anos estudava piano clássico e sempre foi afastada da cultura popular pela família. O nome da autora e da protagonista assemelham-se de modo a criar uma maior confusão ou confluência narrativa no leitor, entre as duas realidades, do livro e da vida. O livro foi publicado em 1981, quando a autora tinha apenas 26 anos. Mais tarde, numa entrevista, David Bowie referir-se-ia ao livro, deste modo, quando lhe perguntaram acerca da veracidade do relato em que ele aparece: «É muito provável que Claudia tenha aligeirado os acontecimentos. Não nos podemos esquecer de que nenhum de nós se lembra bem desses dias. Mas o mais importante do livro de Claudia não é o que ela narra, mas o que nos impele a pensar.» Bowie costumava também dizer que os dias de Berlim não tinham sido tão loucos como os dias nos EUA – aos quais ele se refere como uma espécie de irrealidade vivida –, mas suficientemente fora de qualquer possibilidade de resgate quanto à factualidade. À página 39 lê-se: «Nenhum de nós [Claudia, Iggy e David] acreditava na vida para lá da droga. Gostávamos de beber, mas bebíamos apenas no intervalo entre linhas e seringas. Viver sem drogas era como viver numa cadeira de rodas ou numa cama de onde não nos pudéssemos levantar e dependêssemos dos outros para tudo.» Nesta altura, diga-se em abono da verdade, o mundo também se prestava a estes modos de o entender. No final dos anos 70 confluíram dois modos populares e radicais de entender o mundo, que apesar de se desprezarem mutuamente partilhavam o gosto pelos excessos: o velho hippy e novo punk. Como escreve Claudia: «Era aqui, na confluência do hippy e do punk, que desaguaram em Berlim, Iggy e David.» Neste mesmo período vive a jovem Christiane F., que escreveria um testemunho pessoal e deste tempo, do ponto de vista dos mais jovens e desfavorecidos. Publicado primeiramente na revista Stern, em 1978 – e que teve a tradução portuguesa em livro, já no início dos anos 80, de «Os Filhos da Droga» –, tem uma narrativa centrada na cidade de Berlim e onde também aparece Bowie, ainda que em concerto. Christiane F. viria mais tarde a conhecer e a privar com Claudia, Bowie e Iggy. Se trago aqui este livro de F. é para que não se pense que o livro de Claudia é da mesma cepa. A narrativa de F. é crua, jornalística, ao passo que a de Claudia é reflexiva, filosófica ou, como disse Bowie, o mais importante não é o que ela narra, mas o que nos impele a pensar. Para além da questão da droga, que aproxima os dois livros – tão diferentes entre si –, Claudia tece uma profunda reflexão acerca de três questões distintas, mas com um laço profundo em comum: a de Bowie como actor de si mesmo, que pode ser extensivo a todas as estrelas pop e rock, isto é, a diferença entre Bowie a sós consigo ou com alguém íntimo e no espaço público; a de um rapaz que fazia covers de Bowie, nos subúrbio de Berlim, e vivia a sua vida como se não fosse ele mesmo mas outro; e a vida dos actores de teatro que todas as noites são outros e durante o dia ensaiam para isso mesmo. Ao longo do livro percorremos estas personagens que vivem na busca de serem outros, como se ao transformarem-se naquilo que não são fossem eles mesmos. Evidentemente, há diferenças substanciais nas três modalidades de se ser outro, e elas surgem no livro, mas o horizonte narrativo que surge no livro é, acima de tudo, a interrogação acerca daqueles que mais visivelmente deixam de ser quem são, deliberadamente, e não a crueza dos acontecimentos. Lê-se à página 110: «Sept Breitner vestia-se e agia como Bowie nos tempos de Ziggy Stardust. A semelhança física era evidente e a voz não andava longe, principalmente nos registos mais altos. Desde que se levantava até deitar-se agia como se não fosse Sept, mas David ou Ziggy. Era muito estranho. Eu conhecia bem David e estava agora ali a tomar café com um antepassado dele, como se viajasse no tempo. A tomar café com David cinco anos atrás. Cinco anos pode não parecer muito tempo para uma pessoa normal, mas para David era duas eternidades. Estava agora tão longe de Ziggy quanto a Terra está de Centauro. Sept estava evidentemente satisfeito em confundirem-no com David, em dizer que parecia mesmo com David Bowie, não apenas em palco a cantar, mas quando andava nas ruas. Ser outro era aquilo que ele mais gostava de ser na vida.» Acerca da diferença entre David nas entrevistas, nos clubes, nos restaurantes, isto é, onde quer que houvesse público, e quando estava a sós com Claudia ou com esta e Iggy, há inúmeras passagens. Magda, amiga de Claudia e actriz, é outra das personagens que aparece muitas vezes no livro, onde a escritora explora a reflexão da paixão da amiga pela representação. «Magda passava os dias a ensaiar, a tentar chegar à perfeição de ser outra, que fazia aparecer à noite no palco. Embora diferente de Sept, aproximava-o o fascínio pela perda da identidade. Mas Magda não gostava sequer de ouvir esses raciocínios de Claudia, dizia que Sept tentava ser a cópia de um se humano e ela tentava ser uma personagem, um ser irreal. Acrescentava que o sonho de qualquer actor é superar a realidade, a de Sept era tornar-se uma cópia igualzinha ao real.» Além de todas estas reflexões sobre a identidade, ou melhor, sobre a busca de outras identidades, há ainda o cenário de fundo da Berlim dos finais de 70 do século passado. E Bowie e Pop. Um livro que marcou, e ainda marca, gerações.