Ideias, factos e ideais

“Neste mundo onde se grita, ninguém ouve os gritos dos que sofrem.”
Raul Brandão (1867/1930), escritor e jornalista português

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]ostava de poder comunicar sensações que pudessem levar a uma partilha de sentimentos, percursos, diálogos…, já que vivemos num meio de sordidez moral, intelectual e estética.

Não sei porque escrevo, talvez porque algo me dói – talvez devido aos charcos da escassez de ideias -, ou será paixão?

Sempre tive mais dúvidas que certezas, desde novo que perdi a pressa de coisa alguma e, penso sempre que o melhor está sempre por vir – tenho uma consciência tranquila com o tempo -, mas nunca gostei de ouvir falar no esplendor tenebroso do destino. “Os meus destinos só estão bem comigo. Ou por eles triunfo ou por eles sou esmagado”, faço minhas as palavras de Amadeo de Souza-Cardoso.

O tempo – esse derradeiro e implacável juiz -, sei o que é (« vivo com ele»), mas não sei explicar – parafraseando ideias de Eduardo Lourenço.

Sempre achei que o tempo era um conceito mais constante. Enganei-me!

Antes de pensar e agir, é preciso sentir. Pertenço a uma geração de transição, contradição e afirmação.

Perdi a ilusão de que pela escrita se pode mudar o Mundo, só Almeida Garrett – quem mais podia ser -, acreditava que com a contundência da sua escrita podia mais do que a espada. Mas os grandes textos tornam-se impossíveis de se abarcar numa só Leitura.

Estamos a chegar a um estado de saturação, o ritmo é frenético e electrizante que não nos deixa pensar.Vivemos dentro de um passo que não é o nosso, é o compasso das máquinas e dos computadores («o triunfo da correcção automática»).

Sôfrega de atenção, actividade e consumo.

Roubam-nos o tempo. Infelizmente já não temos tempo para silenciar o ruído…, saborear momentos…, ter capacidade para sonhar. Torna-mos a vida pragmática e racional.

Temos de saber parar para reflectir!

Sentir («viver») Macau –“ a maneira mais profunda de sentir uma coisa é sofrer por ela” – escreveu Gustave Flaubert -, é percorrer a sua geografia afectiva e sentimental. É combater vícios, sarar feridas, detectar maleitas. É lutar contra a falta de honestidade intelectual e coerência de pensamento, a falta de seriedade.

É envolver-nos na sua alegria e tristeza («dramas e frustações») e, comprometemo-nos moral e éticamente com a cidade. Não se pode ficar inume a nada do que vemos e ouvimos à nossa volta.

Sempre tive uma sensação de proximidade com Macau, sólida e delicada, sensual e familiar. É a penumbra das coisas íntimas que nos atravessam e nunca mais nos largam.

Sinto-me abraçado pela utopia quotidiana da Cidade ( «romântica/sensível e material/vício») – «venho de um tempo em que viver em Macau era rasgar possibilidades».

Sempre tive uma “fiel dedicação à honra de estar” -, para lembrar Jorge de Sena.

Mas nada hoje em dia em Macau parece coerente e inteiro . Vive-se de fragmentos. Não existe uma linguagem de poder, criação e criatividade. A Gramática da idêntidade («auxíliavamos nos apontamentos») desapareceu.

Macau é o deslugar do lugar… Uma Cidade excessiva, massacrada,torturada, flagelada.

Fico triste de vê-la “maquilhada como uma mãe morta” – para lembrar Joan Margarit – , os «filhos» estão abatidos, moribundos, despedaçados, consolam-se!

Não há uma paisagem ética. Há uma espécie de floresta encantada, recheada de perigos.

Uma oposição entre hino e elegia.

A maior parte dos portugueses a viver em Macau já deixaram de interrogar a vida – confiam nela -, criaram ilusões. Viram partir as referências (« gostam de olhar a Lua em noites de luar»). Os mais velhos olham o céu com menos admiração e mais receio. Nos últimos anos a realidade transformou-se em abstração para muita gente.

Vivemos em cavernas de silêncio .

Arrumam-nos os dias («um teatro de medos e esperanças um discurso de ficções e de metáforas»).

Há luz do dia, nasce a angústia!… Precisamos de luz no coração.

Não há consciência crítica nem fraternidade cívica.

Se não houver uma ética de convicções, não haverá naturalmente uma ética da responsabilidade.

Ninguém assume responsabilidade sobre nada – e, por isso o estado a que o Território chegou, é provavelmente, obra do acaso.

Estudamos a narrativa da obediência e esquecemos a poesia da desobediência («em homenagem à “liberdade” verbal»). A população é educada para não reagir, não questionar, não prostestar. Vive-se em economia política do verbo («é triste não os sabermos conjugar»)

Degustamos a luz da poesia no silêncio da vida!

Temos de criar um pensamento autónomo, não enfeudado em dogmas ou crenças. Sermos mais persistentes na exigência crítica, argutos analistas de ideias e factos, perscrutadores de paradoxos e sabermos interrogar constantemente. Não existe por exemplo uma actividade crítica original à materialidade formal .

Uma das máximas da mundividência é o diálogo. Mas não existe diálogo se não soubermos quem somos.

A propaganda é o colapso da linguagem.

O «Poder» não é nem nunca será sinónimo de verdade e justiça, muito menos terá o monopólio da moral e da legitimidade. Exige-se seriedade, respeito, confiança e honestidade.

Vive-se num ambiente infeliz, injusto, irrespirável («assemelhando-se a uma fábrica de preconceitos») –, que pode provocar a desintegração da sociedade («tornou-se amarga»).

É uma sociedade que fabrica a solidão, a demência, a esquizofrenia.

Existe défice de confiança -, a população ainda olha para o Governo com um profundo sentimento de orfandade, inevitabilidade e apatia -, pode ser dócil e empenhada, mas não é imbecil nem estúpida. Rejeita os discursos ambíguos («saber “renascer” a esperança»).

Falo da falta da esperança e desgaste da estratégia.

São vozes humanas que «devemos» saber escutar.

Falta-lhes contudo o exercício da palavra («recurso das palavras»). Não têm o poder da frase evocativa.

Vivemos entre o dogmatismo e a descrença.

Temos de nos tornar mais vigilantes, mais organizados, mais cidadãos – uma cidadania activa e responsável.

Existe um pessimismo generalizado e uma desmotivação colectiva. Crescem as franjas de indignados («a textura social agita-se»).

Precisamos de “outra forma de vivência” – com uma agenda política sólida (« a relação com o “Outro”») e uma visão estratégia da sociedade e, não com artefactos ideológicos («sem alma e sem rosto»), nem com rigidez doutrinária.

É preciso apostar em causas, ideias e projectos, de maneira a “construir” uma sociedade mais justa e inclusiva, com valores, solidária, coesa e humanista.

A sociedade está a ficar mais egoísta, mais individual, deixou de ter uma visão colectiva.

Uma sociedade tantas vezes intoxicada pelo consumismo e pelo hedonismo, pela riqueza e pela extravagância, pelas aparências e pelo narcisismo.

O mosaico espiritual desapareceu, instalou-se a decadência moral na cidade.

A dúvida e a incerteza, são um perigo, para o dia de amanhã…e, a ideia de que não há culpados…, pode-nos levar a pensar que a culpa seja «nossa».

Afinal de contas a idade não serve só para envelhecer. Ou será?

Os sonhos não envelhecem (sem nunca mostrar apreço ou subversão)…. e as árvores morrem de pé («o “medo” do sobressalto do despertar»).


“outros amarão as coisas que eu amei”
Sophia de Mello Breyner
17 Jan 2018