Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasSabendo como e porquê [dropcap]N[/dropcap]ão há facilidade em nenhuma escrita que se interrogue, não somente sobre o seu objecto como sobre si própria. E, nessa estranha dança entre formas e conteúdos, joga-se mais que uma vida: um momento de discernimento ou um mergulho na boçalidade. E seja: um momento pode valer por uma eternidade. Aliás, será também a eternidade um momento, por exemplo para Deus, como o é para quem já abandonou este espaço de efemeridades. Tijolo a tijolo, página a página, palavra a palavra, beijo a beijo, aparentemente o tempo passa, embora seja apenas visível no nosso corpo ou na face enrugada da Terra. Valha-nos a invenção da idade para podermos ir compreendendo um pouco mais as coisas, ao mesmo tempo que o saber acumulado se transforma numa espécie de corrida pela cegueira. Crescer significa, afinal, deixar de ver. E, sabendo como e porquê, existe o advento da morte, essas pequenas mortes que diariamente nos rodeiam, as mortes ínfimas. De seres e trajectos. De ideias. De mistérios. Sabendo como e porquê, abandonamos para voltar a encontrar. Existem metamorfoses do descanso no sono insatisfeito. Há um ruído, de dentes rangidos, de onda agigantada para nunca rebentar. Voltaremos a casa e aos espelhos familiares. Ao calor do forno onde se consome a lenha amável. Ao charco fétido, à lama de chocolate onde na infância se reflectia a esguia lua, às cabanas silenciosas, às estradas por asfaltar. A isso tudo voltaremos. Sabendo como e porquê.
António de Castro Caeiro PolíticaCronologias [dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]embro-me desde sempre perguntar como é que o tempo altera o olhar para o que é visto. Senti sempre uma enorme dificuldade em percebê-lo, não apenas em mim, mas no exterior. Sempre tive a convicção de que o tempo altera o ponto de vista e que era por causa dessa alteração que sentia a perplexidade da mudança. Como é que, porém, nos apercebemos da alteração no ponto de vista, pressupondo que o ponto de vista se altera com o tempo? Se recordarmos Agosto de um ano passado e compararmos com Agosto de um ano seguinte, podemos não apurar nenhuma diferença. Pode, pelo menos, não haver nenhuma diferença na realidade. É na mesma toalha que nos deitamos de costas para olhar o céu azul, é idêntica a temperatura que sentimos. O som de vozes das pessoas na praia, das ondas lá ao fundo, da cigarra, do vento, tudo é o mesmo. Porém, tudo mudou. Em que sentido? A realidade é a mesma, com a diferença de entre Agosto de um ano passado e um Agosto de um ano seguinte haver passado anos. Houve experiências tidas. O tempo trabalha-nos do seu interior para o seu exterior. O núcleo duro do tempo não é um espaço recôndito, mínimo, mas é o trânsito, a passagem, a sequência irreversível em qualquer breve lapso de si. Amanhecer, entardecer, anoitecer, arrefecer, aquecer, chegar e partir, tudo requer tempo e não acontece sem tempo. Mas também ter uma ideia e não ter nenhuma, esquecer e lembrar, sentir e não sentir, ter uma percepção e não ter percepção, compreender e não compreender nada. Tudo é exterior e interior ao tempo. O mundo interior é tão exterior ao tempo como o mundo exterior só acontece na breve distensão do tempo que requer para poder durar. Mas o mundo parece o mesmo. Esta perspectiva a abrir, neste sítio, com a mesma latitude e longitude, para a mesma percepção, tem o mesmo conteúdo: o céu azul de Agosto na praia. E, contudo, há mudança. Partiram pessoas e chegaram outras, aprofundou-se ou perdeu-se fundo nas relações humanas, progredimos ou regredimos no desporto, nas actividades a que nos dedicamos. Tudo é diferente. Há menos tempo do que no ano passado. Na mesma percepção tenho a noção de tempo, embora não surja ao olhar. O mesmo sítio com menos um ano ou o mesmo sítio com um ano de diferença não é o mesmo sítio. O sítio tem a mesma localização geográfica e é em mim que vejo o mundo, mas não tem o mesmo tempo. O ano passado foi-se na enxurrada do tempo, no cataclismo do tempo que leva o instante de há pouco para um tempo irrecuperável pelo presente. O ano passado foi-se e não voltará nunca mais. Esta noção de que um sítio tem um tempo e o mesmo sítio é diferente em tempos diferentes e que o mesmo sítio este ano e no ano passado são sítios diferentes, esta diferença, é esbatida. Não estou no ano passado e no ano passado, quando estava aqui, não estava no seu futuro passado que só agora, este ano, existe. Eu sou outro. O outro que eu era no ano passado morreu e não volta e o eu que sou agora estava ainda por nascer outrora, como a minha versão de 2018 não está presente ainda e quando estiver, agora será outrora, eu já não estarei aqui no presente como estou agora, mas serei outro no aqui e agora, que terá passado. O tempo trabalha-nos extaticamente a partir do seu interior, um interior ao qual somos extrínsecos mas fora do qual nada existe. E tudo está continuamente a ser trabalhado entre o agora mesmo aqui que será há pouco mas já sem ser agora e não é ainda daqui a nada, sendo-o já de alguma maneira. Lembro-me de chegar a cidades onde vivi e delas partir e regressar vezes sem conta para novas fases da vida nelas. Lembro-me de chegar a locais para férias e de os deixar como me lembro de deixar Lisboa para trás e a reencontrar no fim do Verão. A realidade pode ser sempre a mesma, os mesmos sítios, as mesmas casas e a mesma mobília. Pode não haver perceptibilidade da mudança e, mesmo que a mudança tenha ocorrido, é como se não se tivesse dado. Mas tudo muda de um instante para o outro. A vida transforma tudo, diferencia tudo de um momento para o outro e a travessia dos momentos é compreendida como boa e má, curta ou longa, por cuja passagem damos ou não damos. Com os olhos postos nas traseiras, no lado que veremos depois de dobrada a esquina, no interior de edifícios que vemos de fora ou no seu exterior, visto de dentro, com os olhos postos sempre no instante seguinte, traga ou não novidade, seja o mesmo confirmado ou defraudado, o tempo futuro acama o presente e sustenta um passado como o mesmo ou como completamente diferente. É quase indiferente que tudo seja fotograficamente o mesmo ou diferente. A diferença está numa dimensão invisível, anónima o mais das vezes, mas que transfigura e metamorfoseia tudo. Quando partimos a sul, deslocamo-nos e não viajamos já. Não regressamos nunca ao passado e o que encontramos é sempre a mesma coisa, como se não tivéssemos saído do mesmo sítio onde nos encontramos. Mas há momentos em que somos surpreendidos pelas paredes das nossas casas, nas divisões que mais habitamos, como se delas exalasse uma névoa ou uma brisa despegada da realidade concreta da cor e da sua lisura. Uma névoa temporal que forma o ambiente e a atmosfera que são os próprios elementos da percepção. Somos transportados para a infância ou a juventude, como se o tempo lá fora fosse o do calendário e o tempo cá dentro tivesse uma outra agenda, sem tempo havido, e o tempo presente é o passado, sem futuro ou então com o mesmo sentido do passado cristalizado onde um dia fomos. Aí percebemos que tudo aí fora pode ser o mesmo. Que a vida é o clima complexo onde caímos. Assola-nos, paira sobre nós ou embrulha-nos como num sonho impermeável onde as vidas dos outros são sonhadas como as nossas. Não se sabem por quem ou pelo quê.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO amor não escolhe idades [dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á diz a sabedoria popular que o amor não escolhe idades, seja isso porque o amor pode vir a qualquer fase das nossas vidas ou porque as nossas preferências amorosas não se prendem única e exclusivamente por sujeitos da mesma faixa etária. Se o amor não escolhe idades, o sexo também não escolhe idades. Não me venham cá com lenga-lengas de que relacionamentos com parceiros mais velhos ou mais novos são reflexo de ‘recalcamentos’, má resolução de processos de vinculação ou que possam ser encarados como problemas psico-emocionais. Aconselho muita calma nesses julgamentos. Todos já reparam que o mais recente presidente francês tem uma esposa com mais 24 anos do que ele. Por causa disso, o Macron já foi acusado de ter um casamento de fachada porque é um homossexual não assumido – casado com uma mulher só para satisfazer as expectativas heterossexuais. O que é que é problemático nesta discussão? Para mim, nem é a homofobia associada, mas o facto de uma mulher de 60 anos ser automaticamente cunhada como não desejável – porque raio um homem se sente amorosa e sexualmente por uma mulher com rugas? Deve ser homossexual! Pois, a assumpção social não é a regra, felizmente. Olhemos agora para o mais recente presidente brasileiro, que tem uma esposa 43 anos mais nova do que ele. Alguém acha atípico? Nem pensar. Devem pensar que o dinheiro compra esposas belas, novas e jeitosas, mas ninguém dúvida da virilidade do homem, vulgo, da heterossexualidade do homem. Porque estar com uma mulher mais nova é mais natural do que estar com uma mulher mais velha. E assim o pessoal anda a julgar relacionamentos heterossexuais de acordo com as expectativas de beleza femininas. Porque, infelizmente, as mulheres (mais do que homens) têm um prazo de validade mais precoce. O que faz com que seja normal que homens com mais de 70 anos tenham mulheres jovenzinhas, mas o contrário seja mais criticado e duvidado até (!) – talvez seja altura de pôr essas ideias em causa, para paramos de encontrar homens que digam qualquer coisa como: ‘achei uma mulher de 50 anos sexy, o que é se passa comigo?’ Não se passa nada de errado com ninguém. Acho que ninguém dúvida que o cupido possa enviar umas setinhas românticas a casais com diferenças de idades de mais de 20 anos – e que possa haver paixão, tesão e desejo. Seja ele o mais velho ou ela a mais velha, sejam casais heterossexuais ou homossexuais. Os desafios, é que são uns quantos, sim. Os julgamentos do sociedade alheia podem não ser muito simpáticos – são mais vezes reprovadores que outra coisa. Os ditos ‘especialistas’ em relacionamentos cunham certas constelações relacionais como trágicas à partida. Mas na minha humilde opinião, o que me parece desafiador num relacionamento entre dois seres com uma grande diferença de idade (quasi-geracional) não se prende tanto com questões de maturidade-imaturidade (que todos sabem que não depende da idade). Por mais que os membros de um casal possam ser feitos um para o outro e encaixem na perfeição na forma de ser e de serem, uma pessoa de 25 anos e uma pessoa de 40 anos podem perspectivar objectivos de vida diferentes – e isso pode ser problemático. Se antes era dado adquirido que todos trabalhavam para terem uma casa, puderem casar e ter filhos, hoje em dia a imagem não se pinta bem assim, e a panóplia de possibilidades e de estilos de vida multiplicam-se. E as constelações, até as mais perfeitas, podem partir-se, por não estarem em sintonia com o que um e o outro querem fazer. Imaginem lá uma mulher de 35 anos a querer ter filhos com um homem de 25, que se calhar não se sente tão capaz de se aventurar na paternidade? O amor não escolhe idades, mesmo. E o amor também não escolhe tão acertadamente trajectórias de vida semelhantes e/ou momentos que possam estar em mais sintonia. Para além disso não há mais nada, nem daddy issues, nem complexos de Édipo mal resolvidos. Descompliquem!