Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasHistórias do Fantas 37º Festival Internacional de Cinema do Porto The Citizen [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ilme de Roland Vranik, 117’, Hungria, também seleccionado para os ecrãs do Festival de Berlim, é de uma colagem forte ao real e ao tema da migração. A relação do eu com o outro, o reconhecimento da alteridade como processo de descoberta do eu. A Europa, espaço civilizacional e território organizacional, é olhado como desejo e vontade de pertença pelas populações que sofrem na dureza do quotidiano as actuais guerras da reconfiguração da ordem internacional que ocorrem no lado sul do mediterrâneo. É com a ideia de identidade e pertença a um território com soberania própria, a nação, no caso a Hungria, e o processo de aquisição do estatuto de cidadão para quem chega de fora movido pela urgência da sobrevivência e o sonho Europa, que Roland Vranik, filma “The Citizen”. Na sinopse do filme pode ler-se: um homem negro tenta durante anos tornar-se cidadão da Hungria Filme de grande e aparente simplicidade, transporta-nos à realidade que sabemos existir através dos espasmos noticiosos dos prime time das tvs. Esta realidade, a dos campos de refugiados e da guerra nos países no lado sul do mediterrâneo é permanente em todo o filme. Em campo, seguimos as rotinas de um quotidiano banal de um homem da Nigéria. O trabalho de segurança no supermercado de bairro de uma organização transnacional de distribuição alimentar, a vida no apartamento que partilha com um amigo, a vontade e o esforço para a obtenção do documento que confere o estatuto de cidadão húngaro. São várias as dimensões com relevância na inteligente construção fílmica desta obra, uma, é a eficácia com é trabalhada a percepção da presença do fora de campo enquanto elemento da materialidade narrativa. Nunca, em nenhum momento, é-nos dado a ver qualquer campo de refugiados, ou imagens das cidades destruídas nos conflitos da guerra, nem emigrantes em movimento. O realizador sabe que não é preciso, já todos as vimos. O que é preciso, é conhecer o outro, viver com ele a vida, o seu quotidiano de humildade, esperança, revolta. A força da dignidade do homem. A vontade de uma vida comum, banal, pacífica, sem errância, onde a dor pode ser, se não esquecida, atenuada e tolerada no movimento repetido dos afazeres do quotidiano sem acessos constantes de intoleráveis imprevistos. O filme mostra-nos a verticalidade, a dignidade do outro na submissão por vontade ao processo burocrático e Kafkiano para a admissão ao lugar de cidadão húngaro. Essa vontade e a dificuldade da sua concretização levam o protagonista ao encontro com uma professora reformada, uma mulher que vive a sua família num quotidiano normal, marido e dois filhos, numa vivenda em rua tranquila com velhos castanheiros nos passeios. É a irmã da gerente do supermercado onde o herói trabalha como segurança. Este encontro é toda uma sequência de cenas de uma rara e revolucionária beleza trazida à centralidade do filme. O amor, a descoberta do outro, o pré-conceito, o racismo, o ciúme e a posse, a solidariedade, o afecto, a aceitação da condição de diferente do outro, a capacidade da alegria e a vontade de servir, proteger, amar . A raridade é todo se passar numa quase total ausência de espectacularidade, a um ritmo que torna visível a interioridade dos sentidos e sentimentos com os quais se reconhece a especificidade do humano. Olhar é este filme é também verificar o rigor e eficácia da sua construção narrativa. Logo no início, aquele que partilhava com o herói o apartamento parte para a Áustria. Vai para um novo trabalho. Pouco depois, uma mulher, jovem refugiada do Irão chega. Não vem só. Está grávida. Sem papéis e neste contexto em que o acesso à Europa é mais do que um oceano de burocráticas dificuldades, o apartamento é uma minúscula ilha abrigo. O herói torna-se parteiro e o apartamento maternidade. A criança é uma bela menina a quem a mãe dá o nome da avó. Os exames e as reprovações para o acesso aos papéis que conferem a cidadania sucedem-se. Para um negro é ainda mais difícil. O processo pode demorar 8 a 15 anos. A mulher mãe de família, professora reformada, descobre novamente a paixão, muda e é expulsa de casa. O herói é desancado, batido pelo pai e filho da professora que se tornou amante. O desejo de posse, ciúme, a vontade de apropriação do outro, fazem com que aquela que por vontade e contra hábito instituído, ousou amar o negro emigrante, informa a polícia da existência da bebé e da mãe. São deportadas. Finalmente pelo correio chega a carta que confirma a cidadania do herói. O negro, que lutou para que lhe fosse reconhecido o direito de ser igual , pela admissão à comunidade territorial de pertença, é agora cidadão húngaro. Não consegue aceitar o acto que, para a professora reformada foi de amor, e para o herói, denúncia e violência. O agora cidadão húngaro abandona o país. Parte para a Áustria onde o amigo lhe encontrou novo trabalho. Lines Do realizador Vassilos Mazomenos, um grego que também é produtor e argumentista, foi exibido o seu mais recente filme, cujo título original é Grammes. O realizador é fundador e director da Horme Pictures. Este filme é a sua oitava longa metragem e os seus filmes já passaram por festivais internacionais; Montreal, Cairo, Puchon, Sitges, Chicago entre outros. Filme rodado em 2016, segue a abordagem estetizante e procura de uma linguagem plástica com que o realizador tem vindo a afirmar a sua carreira. Vassilos, tem neste filme como tema e estética cinematográfica, as consequências da crise grega em pessoas de diferentes condições sociais. Organiza a estrutura em capítulos; teatro, fábrica, escritório, rua, política, contando histórias pessoais de vivências que se desmoronam em resultado do tempo económico , financeiro e social, vivido na Grécia. O eixo que une narrativamente o filme é uma linha telefónica de atendimento SOS para pessoas em situações de enorme fragilidade. A linha oferece exclusivamente, apoio psicológico, basicamente a disponibilidade de ouvir e, em todos os casos, é a ausência de fundos financeiros a razão do estar em crise. Com 85 minutos, montagem de Thanos Koutsandreas, fotografia de Giorgos Papandrikopulos, o filme, com momentos de particular interesse pela composição; enquadramentos, mise-en-cène, direcção de arte, décores, cuidados e que reflectem a abordagem estética do realizador ao seu cinema, causa alguma interrogação e perplexidade que no entanto não parece ser suficiente enquanto abordagem para a dimensão social, cultural e económica que se propôs tratar. Veremos o que dirá o júri do Festival.