António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasHemorróidas de Ouro 05/03/2018 [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] convivência fraternal, eis um princípio que, como as bolotas, nenhum porco deixa incólume. Imagine-se o gáudio de Putin, ao anunciar que tem no seu arsenal a arma invencível. Deve ser um míssil que despoleta orgasmos à sua passagem (parece que a seis vezes a velocidade do som) e desperta na matéria inanimada as sensações de Zeus quando penetrava a alva novilha Io. E, em delíquio, os poderosos sistemas antimíssil americanos abstraem-se da sua missão. Eu também fiquei gago quando, no balcão de um café em Paris, o meu ombro se encostou à ombreira de Grace Jones, confesso. Até compreendo a gabarolice de Putin (- Trump, nenhum twitter?). Coitado, calhou-lhe ser contemporâneo do americano intimorato e de Xi Jinping. Trump já demonstrou que não consegue assimilar uma regra simples: às vezes para ganhar é preciso perder. (Eu vou mais longe, ainda que o jogo seja perigoso: só se ganha quando se perde. Um bom exemplo na História é a forma como os gregos perderam a sua soberania para os romanos em troca de colonizarem o espírito do império romano, até ao seu término; outro exemplo, o modo como o irrelevante Fernando se transformou na indústria Pessoa. E diga-se, ele sabia.) Este é um tipo de lucro inaceitável para Trump que só tem olho para as imediatas vantagens materiais, descura as reciprocidades, e sofre do Complexo de Midas. Quanto ao novo imperador chinês, passou a aplicar-se-lhe tudo o que em 2011 escrevi no meu blogue sobre o anterior presidente norte-coreano: «De acordo com a agência noticiosa da Coreia do Norte, a KNCA, novos estranhos fenómenos naturais têm sido testemunhados, agora um pouco por todo o mundo, desde a morte do Líder: No México, um ácaro matrimoniou-se com uma lâmpada de 100 watts, resignado por, desde a morte de Kim Jong-II, ter deixado de fazer qualquer sentido a distinção entre matéria orgânica e inorgânica. A camela (afinal era uma) que em Jerusalém atravessava há dois mil anos o buraco da agulha desatou a parir. Um selo de dez ienes imolou-se em frente à sede da ONU, em Tóquio. Um panda deu um concerto de bateria na messe dos soldados que guardam a fronteira com a Coreia do Sul mas estes, compungidos pela morte do Grande Líder, não arredaram o pé das guaritas. Na lua irromperam da terra as melancias e houve uma súbita chuva de ósculos. Sacudido pelo luto, Deus, para afastar de si a funesta ideia do suicídio, começou finalmente a ler o Kapital do Karl Marx. Em Lisboa, o arroz carolino mudou de sexo. Na Califórnia, o miado dos gatos mudou para miu! O cadáver do Michael Jackson teve uma polução nocturna. Nevou pez no resto do mundo, só na Coreia a tempestade de neve manteve a sua alva pureza! O fecho-éclair de Kim Jong-un quase soçobrou aos encantos da lascívia mas manteve-se firme. Uma lágrima encetou a travessia do deserto do Saara. Na capital chinesa, as peças do Mahajong desataram a florir.» O pragmático Putin, pode sentir-se seguro entre dois profetas de tal monta? Mais do que um gesto de bravata, o seu anúncio premedita a intenção de restaurar a confiança – a sua, de um volúvel homem entre imortais, embora também já se anuncie que os seus genes são de outro tipo de gema. Por outro lado, se fosse aos russos não confiava num homem tão inseguro de si que em vez de usar o seu poder de influência para incitar os homens à fraternidade e ao diálogo insiste em querer provar-nos que Deus tem dentes cariados. Que Este responda e na sua ira Se imole como mártir (para assinalar a loucura dos homens) frente à sede onde pontua o mano Guterres, ou, então, como no Primeiro Livro de Samuel, castigue a cupidez dos Grandes Líderes com Hemorróidas de Ouro. 06/02/2018 Entre tantas coisas que havia esquecido encontrei esta espantosa Carta de Lygia Clark para o seu filho – datada de 1970: «Meu filho,/ Você é um ser./ Existe na medida do mundo./ É pouco./ O mundo é a constatação da realidade exterior que te cerca./ É a tua medida inicial./ É o teu começo mas não o teu fim./ É o chão da tua expressividade pois você é um ser vertical./ Para cima do chão há o “invisível”./ Você pode olhar os seus pés mas não a sua própria imagem./ Esta você a percebe./ Na verticalidade está a medida da sua procura.» No que sublinhei está para mim a chave da carta. O invisível associa-se ao que não se vê na aparência e só se capta parcialmente pela percepção que os outros adquiriram de nós e nos transmitem, porque o próprio não vê o que nele é uma propensão e não uma jactância. O homem bondoso age assim porque sim, idem para o generoso ou para o homem criativo. Porém eles não têm a certeza da sua medida. São assim porque não conseguem ser de outro modo e não por cálculo. E só este desinteresse faz a verticalidade do homem e exalta os valores e não as coisas. Só isso está “acima do chão” e molda uma dignidade sem freio. 07/03/2018 Um poema extraordinário do poeta sueco Tomas Tranströmer (a versão é minha): «Farto dos que chegam atulhados/ em palavras e nomes – uma algazarra,/ mas nada de linguagem – parto para a ilha coberta de neve.// O indomável não tem nomes. // Brancas, as suas páginas / encadeiam em todos os sentidos. /Dou de caras com as pegadas / de um cervo na neve: / nada de palavras mas uma linguagem.» É um poema que me diz muito, neste momento. A despropósito, esta quinta-feira 8, às 18h, lanço em Maputo um livro de poesia, que co-assino com o poeta moçambicano Mbate Pedro. Chama-se Os Crimes Montanhosos. E estão os meus amigos convidados.