Os Concertos para Violoncelo

[dropcap]O[/dropcap] compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos, cujos 60 anos da morte se assinalaram no passado dia 17 de Novembro, é descrito como “a figura criativa mais significativa do Século XX na música clássica brasileira”, tornando-se o compositor sul-americano mais conhecido de todos os tempos. Autor prolífico, escreveu numerosas obras orquestrais, de câmara, instrumentais e vocais, totalizando mais de 2000 até sua morte, em 1959. Villa-Lobos teve como primeiro e dilecto instrumento o violoncelo, compondo várias obras para o mesmo, entre as quais dois concertos.

Se o seu Primeiro Concerto para violoncelo, o Grande Concerto No 1, Op. 50 não se parece muito com outros trabalhos seus conhecidos, é porque se trata de uma das suas primeiras composições – provavelmente a sua primeira tentativa reconhecida de compor para orquestra –, e porque, em 1913, ainda não tinha desenvolvido um estilo distinto. A imaturidade do compositor é patente tanto no seu manejo inconstante da forma, como no material pouco digno de memória. A obra partilha influências francesas e brasileiras, patentes nas suas longas linhas líricas para o violoncelo derivadas de melodias populares brasileiras, enquanto a orquestração reflecte a influência de Debussy, ainda vivo quando Villa-Lobos deu os toques finais neste concerto. A estreia ocorreu no dia 10 de Maio de 1919 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sendo solista o violoncelista Newton Pádua, sob a direcção do compositor.

Felizmente, o Segundo Concerto, composto no Rio de Janeiro em 1953, é muito superior como obra – agora na veia mais madura do compositor e com uma reminiscência interessante no segundo andamento da suite Bachianas brasileiras nº 5, especialmente quando a extensa cantilena do violoncelo é acompanhada por uma figuração rápida em pizzicato. O Concerto para Violoncelo e Orquestra, N° 2, W 516 foi composto por encomenda do violoncelista, também brasileiro, Aldo Parisot. Foi estreado por Parisot com a New York Philharmonic, sob a direcção de Walter Hendl, no dia 5 de Fevereiro de 1955. O suporte harmónico e o som orquestral lembram a abordagem mais rigorosa e eficaz de Hindemith, um atributo que não é certamente encontrado com frequência em Villa-Lobos. Embora o compositor não cite directamente nenhuns temas populares neste Concerto, a música soa definitivamente brasileira, com elementos e ritmos de dança folclóricos a permear a partitura. O uso de fontes brasileiras é visto como um tributo ao seu compatriota, Aldo Parisot, a quem a obra foi dedicada. Alguns desses elementos foram tirados da música do Nordeste do Brasil (como os padrões rítmicos do “desafio” e do “berimbau”), uma região cuja expressão popular foi muito admirada e estudada por Villa-Lobos. Não por coincidência, Parisot é também originário do Nordeste e desta forma o compositor tencionou provavelmente capturar as suas raízes nativas.

Sugestão de audição:

Heitor Villa-Lobos: Cello Concertos Nos. 1 & 2
Antonio Meneses (violoncelo), Orquesta Sinfónica de Galicia, Victor Pablo Pérez – Naïve, 1999

17 Dez 2019

Bachianas brasileiras: os Concertos de Brandeburgo

[dropcap]O[/dropcap] compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos, cujos 60 anos da morte se assinalaram no passado dia 17 de Novembro, é autor de um catálogo de proporções colossais, com cerca de duas mil composições que abarcam todos os géneros, sendo a figura essencial da música clássica brasileira.

Filho de mãe indígena, recebeu as suas primeiras lições de música do seu pai, violoncelista aficionado. O violoncelo, precisamente, ia ser o seu primeiro e dilecto instrumento; mais tarde aprendeu a tocar piano e vários instrumentos de sopro. Formado musicalmente à margem das instituições e dos conservatórios oficiais, foram determinantes as viagens que realizou ao interior do Brasil a partir de 1906, em que conheceu os cantos tradicionais dos índios da selva amazónica, que exerceriam uma influência decisiva na formação do seu estilo, caracterizado por uma absoluta originalidade formal e harmónica, livre das convenções do nacionalismo mais académico, mas no qual a recriação, mais do que a alusão directa de melodias e ritmos indígenas, ocupa um lugar preferencial.

Em 1915 deu-se a conhecer, não sem polémica, num concerto celebrado no Rio de Janeiro e integrado todo ele pelas suas próprias composições, cuja novidade chocou com o conservadorismo do público assistente.

Uma bolsa concedida em 1923 pelo governo brasileiro permitiu-lhe financiar a sua formação em Paris. Ao regressar ao Brasil, exerceu o ensino em centros distintos, enquanto a sua música conquistava reconhecimento nacional e internacional.

Da sua abundante produção sobressaem as nove Bachianas brasileiras (1932-1944), nas quais Villa-Lobos se propôs sintetizar o contraponto de Johann Sebastian Bach com as melodias populares da sua pátria, a quinta das quais conquistou merecida fama.

As Bachianas brasileiras foram compostas entre 1930 e 1945. O conjunto de suites, escrito para formações diversas de instrumentos e vozes, funde material folclórico brasileiro (em especial a música sertaneja) e as formas pré-clássicas ao estilo de Johann Sebastian Bach, tencionando o compositor construir uma versão brasileira dos Concertos de Brandeburgo do compositor alemão. Representam não apenas uma fusão da música popular brasileira, por um lado, e o estilo de Bach, por outro, como uma tentativa de adaptar livremente uma série de procedimentos harmónicos e contrapontisticos barrocos à música brasileira. Esta homenagem a Bach também foi feita por compositores contemporâneos como Igor Stravinsky.

As Bachianas brasileiras resumem a preocupação do compositor com o seu antecessor barroco – que ele considerava “um mediador entre todas as raças” – e compreendem uma série amplamente abrangente de nove suites. A palavra “suite” é especialmente adequada aqui, pois em cada uma Villa-Lobos alude à terminologia das suites instrumentais barrocas de Bach nos títulos compostos que dá à maioria dos andamentos: a primeira parte do título evoca o mundo de Bach (Prelúdio, Ária, Fuga, etc.), enquanto a segunda sugere um contexto brasileiro (como em Embolada, Modinha, Ponteio, Martelo, etc.).

Algumas das Bachianas são para forças de câmara (a No 4 foi escrita para piano solo, mas depois orquestrada), enquanto outras exigem uma grande orquestra. A No 5, a mais conhecida da série, composta para oito violoncelos (o instrumento de Villa-Lobos) e soprano, usa tanto o canto falado como o vocalizo. Os seus dois andamentos foram compostos, respectivamente, em 1938 e 1945. O primeiro, Aria (Cantilena), de enorme beleza e lirismo, evoca o carácter melodioso requintado de um andamento lento de Bach, ao tecer a entoação da soprano no conjunto de violoncelos que tocam em compasso de 5/4. A sua secção central incorpora a sensibilidade da música folclórica no andamento usando um poema da escritora brasileira Ruth Valadares Corrêa (também uma soprano, que cantou a estreia mundial da ária). O poema é uma ode à suave ascensão da lua de encontro ao “firmamento sonolento e belo”. Dança (Martelo) é o título do segundo andamento (“martelado”), referindo-se à persistência do ritmo caracteristicamente brasileiro da “embolada”, observa o compositor. O poema de Manuel Bandeira aborda um pássaro cujo “canto vem das profundezas da floresta, como uma brisa que amacia o coração”.

Sugestão de audição:
Heitor Villa-Lobos: Bachianas brasileiras No 5
Victoria de los Ángeles (soprano), Orchestre Nationale de la Radiodiffusion Française, Heitor Villa-Lobos – Warner Classics, 1958

3 Dez 2019