Professor da UM defende que grande vantagem do sistema judiciário local é ter poucas “pessoas brancas”

Declarações de Gu Xinhua durante evento da universidade merecem condenação por parte da comunidade que pede à instituição que se demarque de um conteúdo visto como racista. O académico em causa recusa o rótulo e aponta para a “América”

 

[dropcap]F[/dropcap]oi num evento oficial da Universidade de Macau que contou com personalidades como o reitor Song Yonghua, a académica e deputada Agnes Lam, o presidente da Fundação Macau, Wu Zhiliang e Yao Jing Ming, director do Departamento de Português, que Gu Xinhua, professor associado de Economia de Negócios, defendeu que a RAEM tem um sistema judicial mais independente porque não é controlado por “pessoas brancas”, o que é uma “vantagem”. As declarações foram relatadas pelo jornal Macau Daily Times, na edição de quarta-feira, sobre o evento que decorreu na terça-feira, como publicado no portal da própria instituição da UM.

Numa intervenção em que abordou “as interferências dos estrangeiros mal-agradecidos” nos assuntos de Macau e Hong Kong, Gu apontou como uma das principais diferenças o facto do sistema jurídico da RAEM ter menos intervenientes brancos, numa alusão a pessoas de etnia caucasiana. “O sistema judiciário de Macau não é controlado por pessoas brancas”, afirmou, segundo o Macau Daily Times. “Isto é uma das nossas vantagens”, acrescentou.

O académico fez ainda o contraste com a situação da região vizinha: “O sistema legal de Hong Kong está nas mãos das pessoas brancas e dos estrangeiros. As pessoas de Hong Kong não têm soberania judicial, só têm soberania administrativa”, considerou.

O professor associado de Economia de Negócios acusou ainda os “americanos” de dominarem a indústria do jogo com lucros de 10 mil milhões e defendeu que o Governo deve fazer tudo para evitar que os “americanos” dominem uma futura bolsa de valores em Macau.

O HM entrou ontem em contacto telefónico com Gu Xinhua, que disse estar ocupado para prestar declarações, mas recusou a ideia de ter praticado qualquer acto racista: “Não acho que seja racista, o racismo está em todo o lado na América”, respondeu.

Por outro lado, o académico afirmou não querer revelar as suas ideias pessoais: “Não queria que as minhas opiniões fossem públicas porque é um tema sensível e são pessoais”, clarificou.

UM em silêncio

Ao longo do dia de ontem, o HM tentou obter junto da UM uma posição sobre as declarações prestadas pelo académico, para perceber se estas representam a instituição de ensino, ou se em sentido contrário, teria havido algum inquérito ou procedimento no sentido de penalizar o professor.

No entanto, apesar dos vários telefonemas para todos os números fixos e móveis disponibilizados aos jornalistas pela UM, além de uma mensagem por correio electrónico com as perguntas, ninguém se mostrou contactável.

Também o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, recusou fazer qualquer comentário às declarações do professor natural do Interior da China, quando questionado pelo HM.

Por sua vez, a Direcção dos Serviços de Ensino Superior (DSES) apontou as suas limitações para actuar no caso devido à “autonomia pedagógica e académica”, mas apelou a que se valorize o multiculturalismo da RAEM. “De acordo com a Lei do Ensino Superior em vigor, as instituições do ensino superior de Macau gozam, legalmente, de autonomia pedagógica e académica, assim, esta Direcção de Serviços espera que, na sociedade multicultural de Macau, sejam melhor valorizadas e transmitidas as virtudes tradicionais do respeito recíproco”, foi respondido.

As perguntas específicas sobre um eventual inquérito e penalização ao académico ficaram sem resposta.

Liberdade de expressão

De acordo com a Lei Básica de Macau, os residentes estão protegidos de racismo e “são iguais perante a lei, sem discriminação em razão de nacionalidade, raça, sexo, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução e situação económica ou condição social”.

Além disso, o artigo 233.º do Código Penal define o crime de discriminação racial, que entre outras condições se aplica a “Quem em reunião pública, por escrito destinado a divulgação ou através de qualquer meio de comunicação social […] difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor ou origem étnica, com a intenção de incitar à discriminação racial ou de a encorajar”. Este é um crime punido com uma pena de prisão entre 6 meses e 5 anos.

Contudo, para o advogado Pedro Leal, Gu Xinhua não terá cometido nenhum crime porque o discurso proferido se enquadra na liberdade de expressão. “Não creio que as declarações constituam crime [ao abrigo do artigo 233.º]. É uma opinião perfeitamente parva, de uma pessoa que merece ser criticada, mas não é passível de crime”, indicou.

Capacidades questionadas

Se no plano criminal, Pedro Leal considera que o professor não tem de se preocupar, o mesmo não acontece à adequação das declarações no plano académico. “Era interessante saber se a universidade que frequenta se identifica com estas declarações”, apontou.

Também Amélia António, presidente da Casa de Portugal, e Miguel de Senna Fernandes, presidente da Associação dos Macaenses, questionam o facto de um professor ter declarações deste conteúdo.

“Como é que um académico pode proferir afirmações desta natureza? […] Entristece-me que determinadas pessoas que ostentam determinados títulos académicos possam fazer observações desse género”, declarou Senna Fernandes.

Por sua vez, Amélia António sublinhou a gravidade das declarações: “Tendo por base uma tradução veiculada no artigo do jornal [Macau Daily Times], acho que é de uma gravidade enorme este tipo de declarações. Obviamente que a liberdade de expressão no território existe e isso é prova dessa liberdade, mas não diminui a gravidade de uma pessoa com responsabilidades, nomeadamente na área educativa, fazer declarações deste tipo”, indicou.

Os representantes das duas associações sustentaram igualmente que a UM devia, apesar de mostrar o respeito institucional pela liberdade de expressão, demarcar-se do conteúdo das declarações que visam as “pessoas brancas”.

Novo normal?

Num contexto em que as tensões se agravam em Hong Kong, devido à instabilidade social, e em que o Governo Central e os políticos de Macau responsabilizam as interferências “externas” pela situação e defendem a aposta no nacionalismo, não é de excluir os efeitos para a comunidade portuguesa. No entanto, as pessoas ouvidas pelo HM não concordam com esta leitura e afirmam que as pessoas sabem reconhecer as diferenças entre Hong Kong e Macau.

“É uma afirmação absolutamente gratuita que não prestigia. Mas não acredito que crie um ambiente mais complicado para a comunidade portuguesa”, disse Miguel de Senna Fernandes.

“Não são problemas de raiz que possam colocar em causa a comunidade portuguesa, que tem vivido os seus dias com algum receio, sempre relativo, mas não se pode falar na existência de uma situação de alarme”, sublinhou.

Já Amélia António sublinhou o contributo reconhecido da comunidade portuguesa. “A comunidade portuguesa em Macau tem sido um elemento extremamente positivo no desenvolvimento do território a todos os níveis. É uma comunidade integrada”, indicou. “Eu percebo que as pessoas estejam nervosas, também pelas referências a Hong Kong. Mas as coisas não se podem baralhar. Macau não é Hong Kong. As pessoas têm outra maneira de estar e outra visão. Não se pode falar nestes termos e generalizar”, frisou.

As declarações de Gu Xinhua foram prestadas durante a Conferência Anual dos Estudos de Macau, promovida pelo Centro de Estudos de Macau da UM, e entre os vários temas discutidos constou o “Legado Cultural Português em Macau”.

 

Gu Xinhua: Estudou e trabalhou no Canadá

Segundo o perfil disponibilizado pela Faculdade de Gestão de Empresas da UM, de que faz parte, Gu Xinhua é Doutorado em Economia Financeira pela Universidade de Toronto, no Canadá, e obteve um segundo Mestrado em Economia, no mesmo país, mas na Universidade de Concordia. No currículo conta ainda com uma licenciatura em Matemática e um mestrado Economia Quantitativa, obtidos na Universidade de Nanjing. Ao nível de experiência profissional, foi professor em três universidades do Canadá e na Universidade de Nanjing. As cadeiras que lecciona em Macau estão relacionadas com economia, finanças e sistema bancário.

18 Out 2019