Barata

[dropcap style≠‘circle’]L[/dropcap]onge da vigília dos sentidos decorre uma noite de mutação kafkiana. Acordo com a sensação de me estar a afundar na cama, de barriga para cima como uma tartaruga em apuros sem firmeza debaixo dos pés. Uma aflição de pernas em articulação desengonçada e pouco familiar esperneiam acima da minha barriga.

Apesar do choque inicial aceito a minha condição com alguma facilidade, talvez devida à simpatia de longa data com Gregor Samsa. A partir das primeiras páginas de “A Metamorfose” consumi compulsivamente tudo o que Franz Kafka escreveu, leituras que viriam a forjar não só o meu gosto, mas a minha morfologia. Talvez tivesse sido mais sensato orientar o meu fascínio literário para a inglória luta de Josef K. em “O Processo”. Mas se existem cidades ideais para uma pessoa se transformar em barata Macau estará, certamente, no pódio das mais apropriadas.

Esgravato no ar um desequilíbrio que me vira para a minha nova posição natural e experimento a tracção de meia dúzia de patas numa vertigem de velocidade. A rapidez com que me movo, aliada à minha recente reduzida dimensão faz-me correr como um carro desportivo com as antenas caídas para trás. Ensaio o primeiro voo e entro num domínio alado que nunca antes me fora permitido pelas óbvias restrições humanas. Só por isto já valeria a pena.

Por outro lado, passo de uma minoria nacional dentro de uma minoria biológica e entro na maior e mais ancestral família animal do globo, testemunha colectiva de sucessivas ascensões e quedas de impérios naturais e artificiais.

Segundo os registos que se conhecem hoje em dia, o primeiro parente afastado dos inaugurais hominídeos remonta a 14 milhões de anos atrás, ainda muito longe e a longos saltos evolutivos dos polegares oponíveis. O meu mais antigo parente de que há registo tem mais de 320 milhões de anos, muito antes de aparecerem os primeiros dinossauros. E sabem que mais? Cá estaremos quando vós, seres pensantes, se extinguirem por terem conseguido cogitar e concretizar o vosso suicídio colectivo e outras colaterais extinções em massa.

Pronto para enfrentar a rua, voo pela janela e contemplo o meu reino. Tudo isto sempre foi meu e assim continuará a ser até à morte do sol. Aterro no passeio e atravesso-me à frente de uma miúda, que segundo as minhas concepções anteriores é de origem ocidental, e divirto-me com o sobressalto que provoco. Ela não sabe, mas estas ruas são minhas, as sarjetas também. Tudo em todo o lado está ao meu dispor, o mundo é o local do meu perpétuo saque desde que do meu torço nasceram seis patas. Também a individualidade se esgueirou para um plano supérfluo.

Tudo nos pertence, somos os donos silenciosos de Macau por mais desinfestações que se façam, por mais que nos matem, nos espezinhem e nos roguem pragas. Nós somos a praga do Êxodo, a vingança adiada do Deus de Israel, os dignos soberanos da sombra e da luz.

Juntas constituímos o maior afluente que a fluidez conseguiu materializar em coloração de madeira encerada, correndo pelas alamedas de detritos animais, somos colectividade, legião, a verdadeira fraternidade da biologia intrinsecamente gregária. Somos a festa dentro de infestação, a seiva que corre pelas canalizações do mundo e das suas entranhas para o exterior. Este planeta é uma migalha que devoramos silenciosamente com o maior apetite comunitário alguma vez visto.

Um dia iremos cobrir a inteira crosta terrestre com sucessivas camadas de nós, seremos planeta, cobrindo tudo de tonalidades que vão do avermelhado ao negro luzidio, revestindo edifícios, montanhas e oceanos. O último som, suspiro de vida, será o coro de patas a raspar na solidez de tudo o que nos é exterior. Faremos migas da Terra e, hoje, proclamamos o início do nosso domínio global. Macau será a fundação da grande Era da Barata, a Jerusalém dos insectos, a confirmação do inevitável. Gregor Samsa é o Messias, o verdadeiro filho do deus das pequenas coisas. Lutar contra a nossa força é inútil, juntem-se ao corpo maior que reina nas vísceras de Macau.

6 Nov 2017