Gastar mundos

Latitudes, Óbidos, 29 Abril

[dropcap style≠’circle’]Ó[/dropcap]bidos, feita de tempo parado, abriu as portas aos viajantes e suas viagens. Nada parece fazer mais sentido, de tão gastas as ruas pelo arrastar dos pés dos visitantes, se até as casas parecem amaciadas pelo correr das câmaras, cada vez mais elas, que os olhos vivem presos aos ecrãs. O gesto temerário de lançar o novo festival «Latitudes» deve-se ao eixo do «Folio», a vereadora Celeste Afonso e o José Pinho, com a incansável Julita Santos, e abriu engalanado pela ilustração, o que se saúda por milhentas razões. As paisagens do André [Carrilho] possuem textura que há-de obrigar a parar e a ver de outros modos. Turismo vai sendo cada vez menos viagem, aproxima-se mesmo da patologia. Valham-nos os livros, que, a pretexto, atirámos dois, ambos com capas do Rui [Garrido], travestindo falsos cadernos com títulos rasgados a pincel. O de Luís Maio, que, desconfio, marcará estes dias ao conter, além dos saborosos relatos, fortíssima reflexão acerca da «natureza das viagens e ao acto de viajar – desde sempre uma metáfora popular para os dilemas da vida, em particular os que advém da inquietude e da demanda existencial». Em «Ninguém Sabe Onde Está» há tanto para fruir como para pensar e gostei tanto de ouvir o autor apresentar-se como aquele que caminha. Muito além do acumular de milhas, do coleccionar de lugares, é definido pelos passos dados. Enquanto o dizia, turistas atravessavam-nos qual etéreo cenário. O Brasil do puto Luís [Brito], contado em «Oi?» vem pintado de carnes. A sua escrita surge atirada para a frente, em permanente desequilíbrio, levando-nos em passo de corrida, pelos lugares, mas sobretudo pelas pessoas com que se cruza, que toca. Vemo-lo, também a ele, autor que caminha, constante e candidamente desnudo em 24 arrepios e algumas cicatrizes. Não há sítios errados. «Ofereceram-me drogas diversas e travestis passaram a berrar, com as suas vozes de tenor. Rimos muito, e Leo, o mestre da pandeireta, disse-me uma frase de sua autoria: «algo de errado aqui não está certo», até que chegámos ao sítio errado que não podia ser mais perfeito.»

São Luiz, Lisboa, 3 Maio

Saio em êxtase de «O Nosso Desporto Preferido: Futuro Distante», do Gonçalo [Waddington], que escreveu, encenou e encarna Hermes, e da Carla [Maciel], que faz de cego Tirésias, o que lê vaticínios e sabedoria na própria própria merda. O bilhete dizia que o lugar era no palco e não mentia. Do lado de lá da cena havia mais espectadores-deuses e a oscilação dos seus rostos e expressões tornou-se cenário vivo. O chão era de espelho partido e por todo o lado havia penas de badmington, a metáfora-bomba desta tetralogia: as penas da humanidade são jogo entediante. Os actores cobriam-se com uma transparência de órgãos bordados à superfície do seu lugar no mapa do corpo. Logo estalou a pura volúpia de uma linguagem entretecida de clássicos greco-vicentinos e quotidiana escatologia, caudalosa torrente em verso dos mais carnudos pensamentos. Enquadrados pelo bulício da dança, a luz como bisturi até ao esplendor final da abertura para a plateia nublada: o mundo. Este vórtice gira em torno do buraco negro que a ausência de sexo nos abre, da cabeça aos pés. Muita merda, desejam-se os actores, nas vésperas de subida a cena, para invocar sortes. Não havia necessidade. Nunca vi tanta e tão excelsa merda. A não ser em cada um de nós. (Cartaz de Alex Gozblau na ilustração).

Bairro Alto, Lisboa, 9 Maio

Cada homem importa por conter uma biblioteca de mundos, um modo único de segurar este com gestos e palavras. A morte de Baptista Bastos encerra como velho cinema de bairro um fragmento vivo do jornalismo-que-já-não-há. O passamento do Baptista Bastos atira para o pó das estantes uma literatura de esticanços, pendurada entre a fala das ruas e a língua trabalhada a escopro e maceta dos clássicos. O desaparecimento de Baptista Bastos apaga restos de uma Lisboa-que-já-foi.

O trespasse de Baptista Bastos torna a noite bastante mais banal. Não poupava nos ódios, aliás de tantos que estimo, nem na generosidade, menos ainda na vida. Não poupava. Ponto. Deu muito nas quatro direcções. Murros no ar. Palavras azedas. Ideias parvas. Sim, bem sei. Mas deu-se incontido e inconsútil e nisso o prefiro a tantos acanhados. Ficas a dever-nos as memórias, BB. Não te perdoo.

Nacional, Lisboa, 9 Maio

Aprimorado e estranho volume, este que reúne dois romances e outros tantos livros de poesia do Paulo [José Miranda]. O requinte deve-se ao cuidado posto na tradução, no prólogo e nas notas do Felipe Cammaert, mas também ao grafismo. Insólito por, assim reunidos, nos surgirem distintos, oferecendo a aparência de outras densidades. Despiciendo não será, portanto, nem rosto nem formato. «La enfermedad feliz y otras obras» brilha doravante em castelhano na importante Colección Labirinto, que o Jerónimo [Pizarro] dirige na Universidad de Los Andes. Estimulante o peso do título «A Máquina do Mundo», que se referia à violência, mas evocava Camões, na interpretação de Felipe: «Toda la escritura de Miranda, sea esta en prosa o en verso, apunta a descobrir las relaciones entre el universo, el ser humano y la naturaleza».

No excelente «Clube dos Poetas Vivos», animado pela leitura e curiosidade da Teresa Coutinho, o nómada e cosmopolita revelou-se em grande forma, afirmando, com verve, a sua vocação maior: leitor, leitor de outros. Os leitores do Hoje Macau conhecem bem as suas libertárias leituras.

Barraca, Lisboa, 11 Maio

De uma assentada, o Miguel Martins anuncia um «turning point» (sic): o fim do seu blogue, «o único verdadeiro deus vivo», o abandono da editora, a Tea for One, o fim das leituras nas quintas d’A Barraca, e a cessação, «num horizonte previsível», da escrita de poesia. Nenhum amigo lhe conseguiu arrancar explicação palpável na melancólica 235ª e última sessão, sublinhada a sopros de saxofone. Seriam avisos de reviravolta alguns versos de «Desvão» (não (edições), 2016): «nem sei estar indubitavelmente presente,/como o frasco dos picles, na prateleira de baixo do armário»?

Ou ainda: «Os meus dias são feitos de excessos e vazios/e o vazio excessivo é a própria matéria porque pugno/o muito tempo todo em que não me calha compor/estas vagas linhas sobrepostas/a que insistem em chamar poesia/mas que são apenas a minha maneira de bocejar sem sono.»

17 Mai 2017