Gonçalo Waddington Artes, Letras e IdeiasPrimeiro acto Cena 2 Valério dá mais uma longa baforada no seu cigarro. Gonçalo bebe o vinho todo que tem no copo e pousa-o no chão, ao lado da cadeira. Não se levanta. Valério Não ias mijar? Gonçalo Depois mudo a fralda. Valério pega no copo de Gonçalo e serve-lhe mais vinho. Levanta-se e vai até à mesa para escolher outra garrafa. Só passados alguns segundos é que percebe que as garrafas são todas iguais. Tinto, mesma casta e mesmo ano. Valério Então e o conto? Gonçalo Sim… [pausa] Era uma história de ficção-científica. Valério Hmmm… Gonçalo Era sobre um neo-nazi português que encontra uma máquina do tempo… Valério interrompe abruptamente o desarrolhamento e desata a rir. Quase que deixa cair a garrafa. Gonçalo [rindo] Pois… Valério Continua! Termina de abrir a garrafa, pousa o saca-rolhas na mesa e regressa ao seu lugar. Enche o seu copo e pousa a garrafa no chão. Gonçalo [suspirando] Encontra uma máquina do tempo… e como sempre sonhou com… Valério [interrompendo] Onde é que ele encontra a máquina? 1 Gonçalo Onde…? [pausa] Era um estudante, físico teórico… estava envolvido num projecto qualquer como consultor… num laboratório de física experimental. Valério Certo! Gonçalo E não era uma máquina tipo cabine telefónica…! Não era uma máquina, ponto! Era uma espécie de estufa… criada para reverter a entropia… Valério A entropia de quê? Gonçalo De quê, o quê?! Valério De um objecto, de um corpo celeste…? Gonçalo Não, não, de nada… [pausa] … do pó! Se um quarto estiver fechado durante uns anos… sem ninguém lá entrar… quando alguém o abrir, não estará exactamente na mesma. Valério Terá pó! Gonçalo Que é desorganização, a segunda lei da termodinâmica e tal… Valério Certo, continua! Gonçalo Ele fica fechado na estufa… não me perguntes porquê, não me lembro!… [pausa] Acho que tinha havido um beberete qualquer, a experiência foi um sucesso… ele foi com uma colega para a estufa, passaram lá um bocado, estavam bebidos – vês, já me estou a lembrar! – … ela vai-se embora e ele adormece lá dentro… Pega no seu copo de vinho e bebe com avidez até o esvaziar. Valério volta a atestá-lo, aproveita e atesta também o seu. Gonçalo [continuando] … acorda no dia seguinte… abre os olhos, não se consegue mexer… vê que há movimento fora da estufa… estranha o movimento, porque era suposto estarem todos de folga, a curar a ressaca… mas está toda a gente de bata, e luvas, e capacetes, tanto quanto ele pode ver… as paredes da estufa são densas e desfocam bastante… até que alguns entram na estufa para fazer umas medições quaisquer com uns aparelhómetros… [olha para o amigo] Eu tinha isto tudo bem pesquisado, agora não me lembro bem dos detalhes científicos… 2 Valério Estou a ouvir… Gonçalo [acanhado] … e… eles estão para lá a fazer as tais medições e cálculos e a trocarem informações… números complexos e tal… e não vêem que ele está deitado no chão, a um canto… andam de um lado para o outro… Valério começa a rir e engasga-se com o fumo do cigarro que tinha acabado de puxar. Tem um ataque de tosse que se agudiza ainda mais com o riso. Gonçalo [contrariado] Pronto… esquece! Valério [tossindo] Desculpa… mas eu [tosse ainda mais]… eu estou a ouvir. Gonçalo [amuado] Oh…! Valério [recuperando] É que estás a contar uma história interessante… uma estufa, a reversão da entropia… um beberete, os dois que se foram comer lá para dentro… mas porquê um neo-nazi? [desata a rir] É que eu estou atento, mas estou sempre a pensar nisso… Porquê!… Um neo-nazi entra num bar… se começas assim, estás à espera que ele parta aquilo tudo!… ainda por cima português! Quê, tem as quinas tatuadas na testa?!.. Não estás é à espera que ele acenda um cachimbo e peça um whiskey de malte… [pausa] Pronto… desculpa. Gonçalo [irritado] E se ele se sentar no balcão, acender um cachimbo e pedir um whiskey de malte…? Valério [rindo] Porque é físico teórico? [pausa] Olha, agora vais fazer birra… Gonçalo Não vou nada! [pausa] Mas o que é que tem ele ser…? Valério [interrompendo] À partida, nada… mas então é só um gajo que entra num bar… e que, por acaso, é neo-nazi! Se dizes “o Gandhi entra num bar”, imaginas logo o gajo pequenino, careca, óculozinhos redondos… e ficas à espera de quê?… de cenas à Gandhi! 3 Gonçalo Cenas à Gandhi!? Mas, então… Valério [interrompendo] Claro que podes começar com “quem-quer-que-seja entra num bar”, mas tens de contar com a expectativa da malta!… “Aquiles entra num bar”… Mas Aquiles porquê?… Está coxo?! É só um tipo vulgaríssimo a quem lhe deram o nome de um semi-deus?… Vou sempre pensar no nome e no porquê do nome e às tantas ele até pode estar a comer caracóis com os pés que eu vou estar sempre a pensar no mesmo… Gonçalo Pensas muito, tu…! [irrita-se] E eu não comecei a história assim, na altura! Não foi “um neo-nazi entra numa estufa do tempo”… Valério Então não foi por isso que ta recusaram! [desatam-se os dois a rir] Vá, continua… Gonçalo Agora esperas… Gonçalo levanta-se e vai direito à porta da direita alta. Entra e fecha a porta atrás de si, deixando Valério sozinho na pequena sala. 4