Filipe Chan, intérprete e tradutor: “Os portugueses falam de tudo”

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]resceu numa Macau da qual existem poucos vestígios, visíveis apenas ao olhar mais atento. Hoje em dia, Filipe Chan, com 37 anos, ainda consegue sentir alguma dessa velha cidade que o viu crescer, evocando as brincadeiras em torno do Jardim Vasco da Gama. “Aquela zona junto ao Lago Sai Van, a Avenida da República, ainda se pode sentir um bocado da antiga Macau”, conta o intérprete num exímio português.

Filipe recorda-se dos tempos, antes da construção da Torre de Macau, em que a vista do lago se estendia desimpedida até ao rio. “A paisagem sem aquela torre fica na memórias das pessoas”, recorda.

Cresceu, sobretudo, com crianças de origem chinesa e macaense e lembra com ternura os passeios dados nos riquexós que se encontram, ainda hoje, perto do Hotel Lisboa. Esses passeios de recreio eram algo muito familiar, hoje em dia funcionam mais como uma oportunidade para turistas tirarem selfies.

O português entra na vida do tradutor através de um curso que lhe surgiu no caminho, sendo que, até à altura, a única ligação que tinha a Portugal era o padrinho português da sua mãe. Ainda não lhe passava pela cabeça seguir uma carreira profissional baseada na língua de Camões. “Como os meus pais não dominavam o português, pensei que era bom para eles terem um filho que conhecesse a língua”, explica.

O momento em que estreitou contacto com colegas lusos foi na altura em começou a estudar para o teste de português. “Não percebia muito bem, tinha muitas dúvidas e tentei entrar mais na cultura e língua para conseguir perceber as obras que tinha de estudar, como “Os Maias” e “Viagens da minha terra”.

Rodear-se de dicionários não estava a resultar, faltava-lhe o poder de expressão, o entendimento. Os colegas com raízes europeias ajudaram-no a compreender melhor as subtilezas linguísticas de Eça de Queiroz e Almeida Garrett. Pode-se dizer que Filipe Chan entrou no português pela porta grande dos clássicos, tendo mais tarde dado uma guinada para manifestações de portugalidade mais populares.

Garagem da vizinha

Mais tarde Filipe entraria a fundo naquilo que é ser português, ou seja, tornou-se um adepto e seguidor do campeonato português de futebol. A sua primeira simpatia foi para o Futebol Clube do Porto, mas mais tarde mudaria para o Sporting. “A partir daí procurei conhecer um pouco mais de Portugal, mas nessa altura ainda não tinha lá ido nenhuma vez”, algo que faria uma mão cheia de vezes.

Numa altura em que não havia tanto dinheiro para sair à noite com os amigos, saídas que não dispensa hoje em dia, Filipe ficava no sofá colado ao ecrã a vibrar com um campeonato a meio mundo de distância. “Antigamente a TDM dava dois jogos por semana”, lembra. Apesar de gostar muito de futebol, o intérprete não se deixa afectar muito, sendo-lhe difícil de compreender o exagero a que o fanatismo desportivo chega. Porém, acha curioso a forma apaixonada como os portugueses falam de futebol.

“As pessoas chegam a irritar-se umas com as outras por uma questão de rivalidade clubística, ou por causa de um penálti mal marcado”, diz. Apesar de estar familiarizado com a forma como o sangue de um adepto ferrenho ferve, Filipe Chan acha incrível como é possível “pais e filhos zangarem-se ao discutir o desempenho de um árbitro, ou um lance duvidoso”.

Outra manifestação profundamente “tuga” à qual sucumbiu foi a música de Quim Barreiros, também mostrada pelo mesmo amigo que o convenceu a ser portista por uns tempos. “A primeira música que ouvi foi ‘A garagem da vizinha’, põe o carro, tira o carro, achei muito cómico e procurei mais músicas”, conta. Quando por vezes não compreendia onde estava o trocadilho, perguntava ao amigo que se prontificava a explicar-lhe.

As viagens são um dos prazeres que não dispensa, em particular à Europa. Os seus países preferidos são Itália, França e, claro está, Portugal. “As pessoas são muito simpáticas, principalmente quando começo a falar português. Ficam com muita curiosidade como alguém asiático fala a sua língua”, conta.

Durante as idas a Portugal, que já vão em cinco, aproveita para degustar a gastronomia lusa. “Gosto de bacalhau, lulas, polvo e, especialmente, marisco”.

Na relação com “tugas” destaca a forma aberta como se relacionam com o outro. “Os portugueses falam de tudo, mesmo as coisas mais íntimas, os chineses só o fazem com amigos mais próximos”, compara.

27 Out 2017