Fernando Vitória, ex-assessor jurídico da DICJ: “Deveria ser criado um Código de Jogo”

O antigo jurista da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ) defende que há ainda muita legislação dispersa nesta área e defende a compilação num Código. Em entrevista, Fernando Vitória afirma que a quebra nas receitas pode ser “um bom argumento” para “pressionar” Pequim a “abrir mais concessões de jogo”

 

Recentemente, um académico do IPM defendeu que Macau deveria legalizar o jogo online. Há espaço para avançar nesta matéria?

Falou-se muitas vezes sobre o jogo online. Houve alguns requerimentos formalizados por sociedades que não eram as concessionárias para [a legalização]. Mas a conclusão dos decisores políticos era sempre a mesma: se já tínhamos tantos casinos e não precisávamos, à data, de mais dinheiro, para quê o jogo online? Havia a convicção de que era mais uma causa de adição. Creio que não se avançou a sério por razões políticas e sociais. Faz algum sentido neste momento, mas não sei até quando este momento [de crise] se vai prolongar. Na China temem um bocado o jogo online, mas na verdade as pessoas já jogam online, com as apostas desportivas. Há um certo receio de que isso se torne de tal maneira popular que se torne um vício comunitário. Mas era uma possibilidade.

Mantém-se as lotarias chinesas, e já foi defendido que esse tipo de jogo deveria acabar em prol da renovação do sector. Concorda que haja mudanças ao nível das lotarias quando se renovarem as concessões?

Sim, porque é um sector que foi muito desprezado. É muito antigo, mas nunca houve grande investimento nas casas de lotarias chinesas, embora elas sejam muito importantes do ponto de vista cultural. Não se deveria acabar com o Fantan, embora as receitas sejam simbólicas, nem como as lotarias chinesas, porque isso faz parte da chinesa.

Na questão das novas concessões o Governo continua a não avançar grandes detalhes. Isso poderá ter influência nos investimentos futuros?

Já se deveria ter dado uma indicação geral da política do Governo em relação às actuais concessionárias. Essa é a questão principal do conceito de concessão que tem várias vantagens, mas que tem esta desvantagem, que se verifica na fase final da concessão: com o receio de a perder, a concessionária deixa de fazer investimentos. Isso é mau do ponto de vista da receita e até do ponto de vista da imagem do Governo. Sei que agora há a desculpa da pandemia e da incerteza quanto à política da China acerca da saída dos seus cidadãos para Macau.

Mas depois olhamos para o Cotai e os projectos avançam, apesar de serem investimentos que já estavam programados.

Já há muitos anos. Mas isso foi uma das coisas extraordinárias que aconteceram em Macau e isso deve-se ao Sheldon Adelson [ex-CEO da Sands China, recentemente falecido], que arrastou todos os outros. Projectos que estavam programados há cinco ou seis anos, foram agendados nos bancos. Em 2015 havia o compromisso por parte do Governo com cinco casinos. Neste momento, as coisas estão no fim de período, não sei se depois de mais um ano ou dois os investimentos vão continuar, até porque há limitações de espaço. Daqui a diante vai ser diferente. Os investimentos no Cotai vão abrandar bastante.

A questão das subconcessões tem agora de ficar totalmente esclarecida com um novo concurso público?

Tem de ficar resolvido e esta é a melhor oportunidade. Na realidade, nem se podem considerar como sendo subconcessionárias porque reportam directamente ao Governo e não à concessionária. Como a lei diz que só podem existir três concessionárias, estamos perante um dilema legal. Teria de se mudar a lei e não sei se haverá problemas na Assembleia Legislativa (AL). Esse era um dos grandes receios. Mas factos são factos, e a solução passa mesmo por uma alteração da lei na AL. A primeira subconcessionária, a Venetian SA, era para ser a sociedade gestora da Galaxy. Mas como eles se desentenderam e tornaram a relação impraticável, não havia possibilidade nenhuma de comunicação, teve de se arranjar uma solução de recurso, e foi essa, a da subconcessão.

Porque se desentenderam?

Nem uns, nem outros estavam interessados em explicar os pormenores do desentendimento. Mas teve, desde logo, a ver com uma concepção de jogo de Sheldon Adelson, que vinha de Las Vegas, e que trazia um know-how extraordinário, que chocou com a maneira mais cautelosa e até diferente da Galaxy, mais ligada à realidade chinesa de Hong Kong. Isso nunca foi dito publicamente, mas os investimentos previstos pelo senhor Adelson eram completamente incomportáveis para a Galaxy. A Galaxy não estava preparada para dar garantias financeiras. A solução da subconcessão até nem foi má, foi a possível na altura. Resolveu o problema de uma forma prática, mas não do ponto de vista jurídico-legal. Um dia destes, nos tribunais, corre-se o risco de alguém invocar a ilegalidade ou a falta de fundamentação da actividade de uma subconcessionária. Convém acautelar isso, sobretudo se houver interesses.

Não há também um certo status quo a manter para que isso não aconteça?

Sim. O pragmatismo chinês acaba por nunca colocar isso em questão de uma forma directa, mas a questão tem de ser resolvida do ponto de vista legal, sob pena de haver conflitos de interesses. Aí o juiz tem de aplicar a lei e isso criaria um problema complicado para o Governo.

Há uma nova redução do número de promotores de jogo licenciados. É um sinal dos novos tempos? Temos a crise do jogo e também a mudança de postura das concessionárias?

O futuro passa por aí. Mas a grande revolução com a liberalização do jogo não foi ao nível dos casinos nem das concessões, foi a nível dos junkets. Era terra de ninguém. Havia três ou quatro regras, mas aquilo nunca funcionou como uma verdadeira actividade legal. Era algo tão disperso e opaco que era preciso fazer algo. Progrediu-se bastante e a lista dos promotores acabou por ficar reduzida, porque perceberam que as exigências legais já não permitiam trabalhar como antes. A pouco e pouco percebemos que todos os anos havia sempre menos promotores. A tendência era ficarem os mais preparados e os que tinham melhores condições do ponto de vista de organização societária e financeira. Essa redução é natural e não quer dizer que a actividade se reduza completamente, quer dizer é que eles têm de começar a funcionar de uma forma mais transparente. E resolver o problema do financiamento.

Em que sentido?

Acho que o principal problema dos promotores é a forma como obtêm o dinheiro. E muito, o que dá origem depois a casos como o da Dore.

É também algo que tem de ser alterado na lei.

É. A questão principal aí é que eles estavam numa zona cinzenta, mas ilegal, de angariar financiamento através de juros muito elevados. Estavam a entrar na zona cinzenta de oferecerem juros muito altos às pessoas que tinham uma promessa de rendimento elevadíssimo se investissem junto dos promotores. E eles estavam a cumprir porque faziam muito dinheiro, mas isso é uma actividade bancária. Depois com tanto dinheiro surgiram vários problemas. Não tinham bancos por detrás para gerir tanto dinheiro. Os promotores mais importantes foram para a bolsa de valores de Hong Kong e aí já existe um controlo mais apertado sobre a sua actividade, mas na angariação de fundos muitos continuam a viver num mundo sem regras e que contraria a ordem jurídica de Macau. Não podem dizer que não conheciam esta situação porque isso foi discutido na AL. Foi dito que essa era uma actividade de bancos.

A percepção de que os junkets estão ligados ao mundo do crime terá cada vez mais tendência para desaparecer?

Quando estava em Macau tinha a percepção de que havia muita actividade criminosa e até violenta associada aos junkets. Mas aos poucos, com a regulamentação e maior transparência da sua actividade, isso foi-se alterando. Deixou de haver a conotação com o crime mais violento para haver a conotação com o branqueamento de capitais e com a transferência de dinheiro de diversas proveniências, como a China. O dinheiro aparecia não se sabe bem de onde, com valores extraordinários. A propósito da regulamentação de branqueamento de capitais fiz o primeiro inquérito destinado a pessoas que queriam jogar além de um certo limite. A maioria das respostas à pergunta “qual a origem do dinheiro?”, era “a minha mãe deu-me”. Mas a situação também não era como os americanos pintavam, que achavam que era um mundo completo de branqueamento ou de apoio ao terrorismo. Não é, porque falamos de transferências entre a China e uma região autónoma que está integrada na China. Mas penso que em Macau não é possível, de um momento para o outro, dispensar os promotores de jogo. Há uma tradição e prática que tem alimentado os casinos.

Falando das decisões dos tribunais, Macau atingiu um nível de excelência na área do Direito do jogo?

Há ainda um caminho a percorrer, até porque sobre o jogo não há muitas decisões. Há questões ligadas ao jogo, como as actividades de promoção de jogo. Creio que os juízes, a maior parte deles, não têm nenhuma especialidade em Direito do jogo. Há um conjunto de normas que ainda não foram devidamente testadas nos tribunais e que são um bocado polémicas, tal como a da responsabilidade solidária das concessionárias em relação à actividade dos promotores. Os tribunais não estão preparados para isso. Havia a ideia de que estas questões nunca deveriam ir para os tribunais, mesmo na Administração portuguesa sempre se fugiu a essa ideia de levar estes casos para tribunal. Então há um longo caminho a percorrer por parte dos tribunais e da legislação e há que aperfeiçoá-la, não em função dos problemas suscitados pelo passado, mas também pela experiência dos juízes. Estes devem ser ouvidos. Mas apesar das melhorias introduzidas a legislação está ainda bastante dispersa, deveria ser criado um código do jogo.

Acredita que pode haver jogo na Ilha de Hengqin? A Macau Legend Development, de David Chow, investiu num complexo comercial, o 勵駿龐都廣場PONTO, por exemplo.

Não lhe sei dizer. Mas, com David Chow tudo é possível.

É um empresário carismático?

À sua maneira é. Em todos os investimentos que ele fez em Macau ninguém percebia muito bem como é que ele conseguia tão rapidamente concretizá-los, mesmo que só dessem prejuízos, como é o caso da Doca dos Pescadores. Ele tem uma maneira diferente de ser empresário. Havia rumores de que tinha ligações especiais a Stanley Ho. Neste momento, ele consegue ter o apoio do Governo Central.

É um dos fortes candidatos a uma licença de jogo?

Acredito nisso, mas depende de muitos interesses e da abertura do Governo Central em relação ao alargamento do número de concessões. Isso tem sido falado, até para satisfazer a vontade de David Chow e a mais um ou outro que foram deputados. Há lugar a mais empresários locais. Há a questão do equilíbrio entre as concessões chinesas e as americanas. Depois de Pansy Ho ter vendido uma parte da sua participação na MGM creio que houve algum receio de que os americanos passassem a dominar o sector do jogo. E a China manifestou preocupação junto da nossa direcção [DICJ]. Esse pode ser um argumento para que haja mais concessões a empresários ligados a Macau, Hong Kong e China.

Poderemos ter seis concessões e mais uma?

A ideia da concessão é limitativa. Mas em relação às licenças de jogo pode haver dezenas e de várias formas. Talvez esta situação de redução das receitas do jogo possa ser um bom argumento para pressionar o Governo Central a abrir mais concessões.

1 Abr 2021