Marcha dos cangalheiros

No último mês tenho assistido aos telejornais portugueses a que posso aceder (RTP e TVI), e estou atónito: a Cultura foi exterminada. Aliando isto à inexplicável proibição de comprar livros “presencialmente” e à suspensão de tudo o que seja espectáculo, confirma-se: para além de um imenso tecido profissional rasgado em pedaços por determinações do poder que pela metade são algo arbitrárias (não vejo a dificuldade das salas de teatro ou de espectáculos – se não convém ter orquestras em palco, divulge-se a música de câmara, por ex. – poderem abrir com restrições de lugares que salvaguardem as medidas sanitárias), regista-se uma profunda insensibilidade para o que seja e representa a cultura. O escandaloso? Que não haja um político revoltado contra “o estatuto de coisa decorativa e dispensável em que se confinou a cultura”; que os agentes da cultura não estejam unidos contra a vileza da miséria simbólica que permeia o actual “pensamento” político (cada sector indiferente aos demais); que os professores não sejam os primeiros a repudiar este estado de coisas. Veremos porquê.

No meu ensaio sobre o Bocage escrevi: «Bocage foi o artista possível num mundo intelectual que era a inúmeros títulos uma farsa. No tempo de Pombal, na ópera italiana da corte, “o primeiro dançarino era cego. Acostumavamo-nos a ver a medida dos seus passos regulada pelas proporções do palco”», e dizia-se «”(…) A representação nem sempre é de bom nível, excepto no caso das farsas”. É um povo que só dá para a farsa, desde que a mordacidade seja doce — e que não se quer creditar para além disso. Natural que os castratri e o travestismo durem em Portugal até ao último lustro do século XVIII, enquanto os actores eram menosprezados, no dizer de Cavaleiro de Oliveira, que daqui zarpou: “Os portugueses, a exemplo dos romanos, têm os actores em grande desprezo. A profissão de comediante é a mais vergonhosa de todas. Consideram-se ainda abaixo das que são realmente infames e criminosas.

Para nos convencermos disto, basta dizer-se que negam sepultura em sagrado aos actores, e que as dão aos salteadores e facínoras” (…) Ao mesmo tempo, segundo os testemunhos estrangeiros, na cidade denota-se um estulto orgulho em ser “mosca”, esbirro, servil, bufo (…) e veja-se esta observação de Eduardo Mascarenhas, biógrafo de Manique: “aos moscardos e moscas entretetidos a vigiar de longe e de perto os cafés (…) não lhes sobrava horas para outros serviços” — ó codiciosa e recompensada preguiça! Neste chão em que os ociosos eram recrutados como delatores, todos eles se viam, mediam e ajuizavam uns aos outros, comendo à vez da mesma gamela; uns pelo elogio e a hipocrisisa, outros pela vileza da denúncia. A dignidade não é ainda uma palavra com plena cidadania. » Daqui não saímos.

Para o filósofo e pedagogo José Antonio Marina, uma cultura fracassa quando, em confronto com um mundo mais complexo do que aquele em que crêem os seus políticos ou comunicadores, estes simplificam a realidade. É um vivo retrato do jornalismo actual, ocupado a simplificar a realidade e a encurrá-la num único índice: a morte. Passámos com exaltação das Indústrias Culturais para as Indústrias da Morte. E com a indignidade dos bufos, que num afã de controle, se esmeram em não falhar nenhum número, esquecendo outros pontos de vista da realidade e até qualitativos, os pivots vestem a pele dos gatos-pingados. É tão deslocado como recrutar Paulo Portas para comentar o Covid.

Um dos marcadores que faz esmorecer a inteligência colectiva é o medo.
Quatro desejos fundamentais motivam as actividades humanas (cf. JAM): sobreviver, desfrutar, vincular-se e ampliar as possibilidades. Para que esta última, a mais importante, se realize é necessário que a relação entre o indivíduo e a sociedade se paute por uma cada vez maior autonomia individual; dinamismo emancipador que faz nutrir a inteligência e essa capacidade desiquilibradora que é o pensamento crítico.

Só depois da terra estar remexida por estes dois instrumentos se semeia a liberdade, nem há desenvolvimento sem que isto se cumpra.

Vejo os telejornais e só me lembro da abertura de um ensaio sobre o Mal do Fernando Gil: «Venho falar-vos do mal. O bem está acima das minhas posses». Esta irónica inversão dá conta dos paradoxos do mundo: a loucura com que a humanidade se evade de interrogar a atracção para alimentarmos com o erário público fortunas instantâneas que nos exaurem, ou o desleixo de não interrogamos porque é que nenhum director de canal televisivo ou um pivot de renome (esses Novos Cangalheiros que passam por “influencers”) se lembrou de que, sendo uma das funções da arte a catarse, e, dada a Grande Anomalia em que vivemos, despontava uma óptima oportunidade para conciliar a arte e a cultura com novos públicos e para aumentar na programação televisão as horas dedicadas ao teatro, à música, à dança, aos livros, às artes plásticas. A questão é: porque é que nenhum se lembrou, desbaratando esta oportunidade histórica? O que os motiva?

Há um contínuo derrame de bens e recursos, como se, precisamente, o Bem estivesse acima das nossas posses enquanto pelo consentimento do Mal brilhasse a promessa de nos lambuzarmos com os restos do saque.

Outra frase, no ensaio de Gil: «A malignidade da natureza humana não é tanto a maldade… isto é… uma intenção de admitir o mal enquanto mal como motivo… como a perversão do coração» resume aquilo a que assistimos hoje: um encortiçamento geral do coração. E se onde há cortiça há vinho, neste caso, não é do que nos aquece o sangue mas é do que nos habitua ao sabor da ira e da cólera e alimenta os Venturas.

Os canais televisivos traíram o resguardo simbólico que só a cultura de um país pode vivificar. Os seus jornalistas aderiram à cobardia militante e já não desfrutam nem vinculam: colocando-se por escolha exclusiva do lado da morte, onde, como arautos desta, só enrolham.

11 Fev 2021