António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasIgnorâncias Insone, passei à sala e agarrei num molho de livros para começar a fazer a minha busca de poemas de todo o mundo sobre o vento, pensando num programa de rádio que planejo fazer com o Fernando Alves (um fascinado pelo vento, como eu). Um dos livros que me veio à mão foi «O Prolífico e o Devorador», do Auden, traduzido pelo Helder Moura Pereira para a &etc. Um livro de aforismos e anotações breves que Auden deixou inacabado. No primeiro aforismo lê-se: «O homem não só cria o mundo à sua própria imagem como os vários tipos de homem criam vários tipos de mundo. Cf. Blake: “O ignorante não vê a mesma árvore que o homem sábio”». Neste momento, de falência cognitiva tão acentuado, esta evidência seria considerada ofensiva. Depois, ao que parece, deixou de haver ignorantes. Disse-me um aluno (fincando a inutilidade da minha presença como professor): basta abrir a net e informamo-nos sobre tudo e todos. No que só deu razão a Platão que antevia na escrita o perigo e a loucura de se idolatrar as sombras. Daí estar justificado que, com tanta sabedoria à mão de semear, o meu aluno se dispense, numa caprichosa constância, de “consultá-la!”. Eu, ao contrário dele – que mantém a ignorância “sob controle e ao alcance dos seus megabytes” (invejo-lhe a crença na “transparência” dos meios) -, considero a vida e a sabedoria como enigmas e à minha ignorância uma benção. É o que me motiva a procurá-la, ciente, de que há, inclusive, muitos tipos de elucidação não verbais. Quando percebo que ignoro qualquer tema, âmbito, a existência de um autor e determinada área, sinto que se avizinha o reencantamento e atiro-me às águas desconhecidas na ânsia de alcançar, mesmo a nado, esse novo arquipélago. Nunca me senti diminuído por desconhecer algo: é uma alegria reconhecer o que ignoro, dado que isso abre o espaço. Nunca tomei é o conhecimento como adquirido, tenho sempre de o conquistar, de o digerir. O que o meu aluno não sabe (lembro Blake, “O ignorante não vê a mesma árvore que o homem sábio”; admitindo que seja eu, noutros níveis, o patego da relação) é que o saber não está na informação, e não resulta da soma dos seus itens, e antes se situa no modo como lemos a “experiência”. Sendo esta, tão somente, o que “acontece” quando a informação deixa de transitar à nossa frente, fora de nós, com os seus brilhos efémeros, e se interioriza, inscrevendo-se subcutaneamente no nosso corpo, levando-nos a mudar a vida e o olhar em conformidade com o nosso comprometimento no seu rasto. Avatar que o meu aluno ainda não está disposto a assumir porque, como é novo, acha que tem ainda mil hipóteses à sua frente e não tem que se vincular com nada. Ora, como alvitrava o Pound, no ABC of Reading, e eu tomo por certo: «Os homens não compreendem os livros até que tenham vivido uma porção considerável da sua vida. De todo o modo, nenhum homem compreende um livro profundo enquanto não tiver visto e vivido ao menos uma grande parte do seu conteúdo.» Talvez se ele observasse o rosto de Auden percebesse: o tempo é um arado e os mil sulcos na face do poeta confluem para um mesmo resultado, é imparável o modo como o humano se aproxima da morte e aos caminhos que se bifurcam convêm estar sustentados em valores para não resultarem em miragens mas em riqueza expressiva. Resulta daqui que na relação com o conhecimento escavar seja o que é exigível, nem que seja para que se levantem poços de ar – percepções concretas. Mas se até o acto de observar, em si mesmo, leva tempo, o que ele não quer “desbaratar”, abstraído de que temos de perder para ganhar… Ilustra-o o belga Jacques Darras, num poema, Nommer Namur, em que alude aos dois rios da sua infância que circundam a cidade), e de que traduzo um excerto (Darras é um poeta de poemas longos): «(…)/ Como restabelecer a circulação num rio confiscado por um hino?/ Deixem-me explicar./ Afago-o vai para um longo tempo./ Acarinho-o há um vasto tempo infinito./ Isto poderia durar meses, bastantes, anos, uma vida inteira./ Acaricio o rio no sentido das suas pernas para conseguir que o sangue reaprenda o sentido da água, a jusante./ Para que ninguém se engane, isto nada tem que ver com a ecologia, é preferível que se considere a medicina./ Uma medicina enamorada./ Uma medicina poeticamente enamorada./Que consistiria em curar os rios ou às cidades com a voz./ Ou reciprocamente./ Com o matiz que pretende fazer passar todo um rio como o Mosa pela sua própria voz de uma vez só, o que suporia um gargarejo gargantuesco./ Enfático./ Não confundir ênfase com empatia./ Não, eu curo-me e curo-nos com os rios, nessa liquidez fluvial./ Queria que nos encontrássemos na palavra, na fluidez./ Essa transparência fluida que é como a respiração da água prévia à desembocadura./ E para o qual os rios do Norte parecem possuir desde sempre uma enorme facilidade./ Na sua moderação pouco torrencial./ Igual a si mesma./ Na sua uniformidade falsamente plácida./ Não busco tanto o epos antigo caricativo com os militares e com as castas de soldados demasiado tempo afastados das mulheres./ Não busco o conhecimento profundo de Gilgamesch./ Busco o jogo alargado da insinuação amorosa através da voz.» Uma voz. Manter no fio de uma voz a insinuação amorosa que pode exalar do afecto e juntar-se à admiração – esse são princípio de proporcionalidade – na liga que importa, que não é a do futebol mas a da vida que decola do seu ponto de irrelevância.