Isabel Castro VozesA partida [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] primeira perda que tive foi a morte. Tinha oito anos e a morte foi-me comunicada tal como ela é, sem paninhos quentes. Ainda não se pensava muito na psicologia das coisas e ainda bem, porque há assuntos em que os rodeios não cabem. A morte é a morte, eu não percebia o que não tinha de perceber, entendi mais tarde, uma semana ou duas talvez, quando compreendi que morrer era perder para sempre. A minha primeira perda foi também um chocolate com passas e frutos secos, de tamanho gigante, nas minhas mãos de tamanho mínimo, uma espécie de pedido de desculpas antecipado pelos olhos que, à minha volta, se acinzentaram. Com o tempo, a perda ganhou outros contornos, depois do significado inicial. A dada altura, num exercício filosófico de adolescente amante de poesia, atrevi-me a pensar que a perda era mais do que a morte e não precisava necessariamente de ser provocada por ela. A escala da perda variava conforme a fragilidade do momento. Repensei a tese uns anos depois, quando a perda caiu que nem uma pedra, toda ela definitiva, independentemente da força que achava ter para sobreviver ao que desapareceu. Sem chocolate com passas e frutos secos. Mas imaginemos que há um índice de perdas. A relativização é algo que nos dá jeito, sempre. Macau é uma terra em que se perde mais do que se ganha, apesar de se ganhar muito, de forma profundamente desequilibrada. Há perdas várias, a todos os momentos, sem termos de recorrer aos lugares-comuns dos casinos onde se perdem fortunas e azares, amantes e outras substâncias inebriantes. Há perdas bem mais difíceis, porque são mais importantes e decisivas, apesar de não serem imediatamente fatais. Perder a oportunidade de crescer bem é quase tão mau quanto não se ser. Não se querer ver é quase tão mau quanto só ter a escuridão como hipótese. Não se saber pensar é o pior. O problema é, mais uma vez, da literatura, da falta de literatura, e da iliteracia, a das letras e a do resto, de não se saber ler o que vai nos rostos, nas mãos, nos gestos cansados. Perde-se a possibilidade de ser mais nesta letargia húmida que tudo invade. Perdem-se pessoas. A cidade é demasiado pequena para as pessoas que se perdem no entra e sai das fronteiras, nas despedidas junto aos barcos, imagem romântica sem qualquer romantismo que resista ao cheiro do combustível queimado, da água estagnada, da respiração dos passageiros apressados. Perdem-se pessoas por via do mundo ser grande, ter tanto para descobrir, mas também por via do cansaço, da desistência, de quem quis mais para isto para descobrir que isto não é para mais, é só para isto. Macau é uma terra de dispensáveis, de vai um chega outro, não há vizinhança que sobreviva para contar a história da porta fechada. Ninguém reparou, sequer, que a porta se fechou. Com as pessoas vão as memórias. A cidade é demasiado estreita para que não sejam conservadas. Ficam as pedras que sobram e os rostos pintados, muitos deles desconhecidos, de quem foi copiosamente chorado para ser esquecido logo a seguir, quase logo a seguir. Não nos ensinam a partir, ficando.
Carlos Morais José A outra face VozesA ausência como centro Pablo Picasso – “Auto-retrato” [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]miúde o exilado se debate com as questões do abandono e da ausência. Situado na posição ambivalente de quem abandonou e se sentiu abandonado, é na experiência da ausência que, finalmente, a sua desterritorialização se constrói e edifica. É à volta desse vazio, tomado quantas vezes por absoluto, que o exilado alicerça novas identidades e se redescobre, enquanto humano e errante. Não se tratará de uma ausência particular mas de um conjunto intrincado, parte inconsciente ou com dificuldade denotado, que constitui uma espécie de vórtice — Maelstrom — em cada singularidade, impregnando-a de um movimento centrípeto, alucinado, mas cujo centro se afasta, ao invés de se aproximar. É por isso que encaramos essa ausência com uma estranha tranquilidade, como se estivéssemos a assistir à nossa morte, no momento em que ela consiste claramente numa metamorfose. Concretamente, não conseguimos deixar de girar em torno dessa ausência, mas ela não exerce uma atracção fatal: pelo contrário, erige-se como um horizonte que contemplamos com uma doçura cada vez mais açucarada, à medida que paulatinamente nos afastamos. Contudo, bem o sabemos, nenhuma distância realmente apagará esse sentimento de ausência que nos assombra. Seja ele fantasmático ou não, faça ele parte de uma qualquer realidade ou meramente se ancore numa imaginação perturbada, a verdade é que esse sentimento resiste ao tempo como se de um mal genético se tratasse. Nunca definitivamente se esvai, nunca de todo se apagará. É mal incurável e bem supremo que singularmente nos distingue. Espécie de maldição irrevogável e bendita, caminho sem retorno para o celeste inferno de uma percepção distanciada do mundo. Procurei sempre esse olhar. Encontrei-o num título de Claude Lévi-Strauss e nas tropelias poéticas de Rimbaud. Fiz um curso para o compreender. Mas nunca, de facto, em mim o experimentara até me deslocar aos confins da minha civilização e nas suas margens ele em mim se entranhar. Percebi que esse olhar distanciado não se aprende de outra maneira que não seja pelo exercício da ausência, pela intimidade solitária do pensamento, nas volutas espantadas de raciocínios bárbaros, nas delícias de concretos paradoxos, excrescências de logos, numa palavra, no exercício diário do exilado. Porque nunca algo se torna tão presente, tão importante, como quando é marcado pela ausência. Como se esta admitisse a presentificação de forma suave, quase ternurenta, do que mantemos encerrado nas caves desse seu castelo, cedendo-lhe espaço para contemplar, analisar, criticar, julgar; finalmente, capazes de entender e amar. Ele há exilados na distância, na geografia, mas também os há que nunca saíram do mesmo lugar. Eles sabem do que estou a falar. De uma saudade de infinitamente abraçar, de amorosamente compreender. Dessa percepção distanciada do mundo, da certeza de não lhe pertencermos por há muito o termos abandonado. Primeiro, a medo… depois, por força das circunstâncias… doutras vezes, a maior parte delas, por sermos mesmo assim e tal carregarmos como destino ou maldição. O exilado não se contorce, nem desespera: há muito que o desespero é seu fiel companheiro e a angústia noiva eterna, à sua espera num altar. É-lhe ridícula a esperança pois, intimamente, sabe que os outros dias não hão-de voltar. Esses dias que nunca realmente aconteceram, o vinho que nunca foi doce e as raparigas que nunca foram disponíveis e amáveis. O exílio é um estranho banho de realidade, na qual todos os dias mergulhamos sem a reconhecermos e dotados de míseras pistas de leitura. É então que se abre o universo e fazem sentido as facetas múltiplas que o compõem. É então que advém um amaciado entendimento, não discursivo, das coisas. Das que tenuemente existem e das que não existem de todo. E é então que o exílio se transforma numa espécie de cidadania de um mundo belo, cruel e indiferente.