Erôs, eróticus, erótismus

[dropcap]U[/dropcap]ma das palavras antigas mais difíceis de traduzir para as línguas contemporâneas é erôs. A sua versão adjectiva substantivou-se. O erótico assumiu expressão, contudo, de um conjunto de fenómenos que vai desde a pornografia em versão suave até ao amor romântico.

O substantivo é nome de acção, exprime uma acção. Sem se fazer a experiência desta acção, não se percebe de que se trata. Tal como a semântica de caminho implica o caminhante, de outro modo o caminho não sai do sítio em que se encontra, estático e morto para a possibilidade que oferece. O grande teórico de erôs é Platão. Tão grande que podemos ter dúvidas, não terá sido Platão a inventar o fenómeno e a inculca-lo na humanidade. Enfim, há algumas características que o distingue do “amor” latino, tal como da “cupido”, mas importa mergulhar no coração do fenómeno, pelo menos como ele é expresso por Platão, e tentar perceber até que ponto se trata de uma palavra para referir o “sentido”, a “orientação”, a “direcção” que a vida toma. Em função da presença de um sentido numa ou noutra direcção, com orientações ou sem orientações, compreendemos que faz sentido ou não faz sentido nenhuma a vida que levamos, a vida que temos, a vida.

Um dos componentes não negociáveis de erôs é a epithymia. A palavra compõe-se de um prefixo “epi-” e da variação do substantivo “thumos, -ou”, palavra que em sentido estrito quer dizer “ira” mas em sentido lato quer dizer todo o acontecimento disposicional, vibrações, modulações, estados de alma disposições do espírito. O prefixo quer dizer que o fenómeno é activo e nós estamos-lhe expostos quando acontece. É invasivo, dominador, deixa-nos no estado que provoca, com a impressão que cria.

Mas o que é estranho e aparentemente paradoxal é o conteúdo da epithumia, do desejo, da ânsia. O seu conteúdo está ausente. A ausência do conteúdo por que ansiamos vivamente ou que muito desejamos não é nada. Antes pelo contrário é uma presença. Esta prasentia in absentia tem toda a nossa atenção. Por outro lado, o momento triunfal, meramente hipotético, da sua posse é projectado para o futuro. Sente-se já um anseio no presente de um acontecimento que a dar-se, dar-se-á no futuro, promete enquanto houver esperança, mas faz-nos desesperar pelo alongamento até ao infinito da espera. Mata de tédio.

A falta, a precisão, a necessidade, a carência descrevem esta forma particular de anseio do erôs. Não é como se tivéssemos tudo o que precisássemos à nossa disposição, com níveis satisfatórios de contentamento. Só nos faltaria aquilo que especificamente não temos mas de que sentimos precisão e de que temos necessidade. Não. Esta ânsia produz um objecto absoluto na hierarquia das coisas que queremos, no nosso projecto vital. Nada do resto “risca”, por assim dizer. Tudo o resto não tem importância. A falta (endeia) com que a ânsia (epithumia) faz sentir o que não se tem é absoluta. Só tenho falta do conteúdo específico de que tenho falta e não tenho necessidade de mais nada, a não ser daquilo que não tenho.

Ora, há tantos desejos, ânsias, necessidades, precisões, carências, conforme a escassez específica que temos relativamente às mais diversas coisas. Há um elemento “erótico” na relação entre sede e o que a mata, entre a fome e o que a mata, entre todos os apetites, todos os nossos desejos e o que os mata ou sacia. O erôs descreve resta relação complexa que temos com inanidades, com ausências que, porém, canalizam as nossas vidas para as suas possibilidades de preenchimento. Mas erôs não se verifica obviamente apenas só na periferia concreta e indespidível do acontecimento humano. Refere até tudo aquilo que não sabemos que não temos. Há todo um conjunto de sentidos que não identificamos como sentidos que constituem a ausência por causa da qual as nossas vidas são por essa ausência e não por qualquer particular presença. E mais, o erôs perpassa todas as nossas vidas, desde antes de termos sido, durante o tempo em que existimos até ao derradeiro momento em que tivermos sido, mesmo que não vivido conscientemente, mesmo que antecipado apenas mas nunca verdadeiramente vivido, por já não fazermos parte deste mundo.

Dizem que o melhor de tudo não é nem a saúde nem a riqueza, mas encontrar na vida o que se ama. E, depois, ser esse amor de vida.

25 Nov 2017

Retratos

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ego numa máquina fotográfica e tento capturar a essência do sexo. A imagem enche-se de cores e diversidade que enquadram os protagonistas: o prazer e a vergonha. O prazer luta pelos seus direitos enquanto que a vergonha tenta atrofiar qualquer tentativa de legitimidade prazerosa. Este conflito é constante, repito, constante. As nódoas negras são visíveis, mas esta é daquelas lutas inevitáveis que têm que ser travadas.

Contudo, este retrato pseudo-global não mostra que a tendência será a repressão sexual, e aí o Foucault também concordaria. A variedade, a disponibilidade para uma exploração sexual plena – e individual – surgiu da nossa capacidade, como sociedade, de criar espaços de discussão para que assim acontecesse. Fomos capazes de enaltecer o prazer e o bem-estar para formas supremas do ser, mesmo que nos pareça que haja fortes contra-correntes a contestar esta possibilidade. O sexo é tão natural e primitivo como intelectual. A complexidade emocional, fisiológica, biológica e mental poderia ser a protagonista deste retrato, mas prefiro pô-la no pano de fundo, como as estruturas necessárias para que o entendimento sexual evolua.

O retrato reflecte a eminência da libertação sexual, e isso será possível quando a política da culpa substituir a política do prazer. Na cultura popular a sexualidade é vista como uma forma rentável de lidar com o mercado. Pensamos que o mundo ocidental é ‘liberal’, mas só o é para fins comerciais – porque o sexo vende. A hiper-sexualização social tem sido bem sucedida a mascarar o pudor que o sexo ainda é. As ‘minorias’ sexuais são as que ainda mais levam por tabela. Aqui incluem-se as mulheres também. As mulheres que de minoria não têm nada – são metade da população mundial – mas que são tratadas como se a luta pelos seus direitos sexuais fossem desnecessários. Se me perguntarem, o retrato do sexo teria que incluir estas novas nuances discriminatórias com que me deparo diariamente, quando tento incutir em muitas cabeças de que há processos interpessoais que (ainda) afectam as mulheres particularmente – e que têm que ser alterados.

Se calhar este retrato merecia uma atenção particularmente feminina, particularmente queer, particularmente trans. Não que queira deixar os homens heterossexuais para atrás! Nem pensar. Só que eles foram os protagonistas do sexo por demasiado tempo, já tiveram direito à sua voz. Uma nova era impõe-se. Imaginem tempos onde o prazer consegue o seu lugar na ribalta! Talvez seja útil pensarmos no sexo mais em relação aos seus potenciais objectivos e dissociá-lo de formas patriarcais que teimam em flutuar – até nas cabeças ditas mais progressivas – incessantemente, descontroladamente.

Não sei se consegui fazer com que este retrato tivesse mais forma, ou se continua difuso, confuso e complexo. Talvez o retrato do sexo consiga se expressar melhor no abstracto, no não dito, no emotivo íntimo. Ou talvez precise de corpos, de erótica de bom gosto que combata a pornografia barata que anda por aí a (infelizmente) formatar cabecinhas. Eu consigo imaginar corpos, muitos corpos que abraçam a pureza que a intimidade do sexo lhes traz. Posso imaginar também uma pessoa, ou um só sexo para reforçar a nossa individualidade sexual, as particularidades do que nos atrai e do que nos excita. Talvez uma máquina fotográfica não seja a ferramenta mais indicada para capturar tudo o que viaja na nossa imaginação. Talvez o sexo, o prazer e o tabu já não conseguem viver dissociados. Talvez o sexo tenha que ser assim mesmo.

16 Mai 2017