Carlos Morais José A outra face VozesO desatino J. Louis David – “Morte de Marat” [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] inútil. Bem podemos ter a ilusão de marchar a direito, de ninguém afrontar, de nos desviarmos de caminhos obscuros, de respeitar escrupulosamente a lei, de tratar os outros como gostaríamos de ser tratados, de deixar cada um na sua vida e apenas intervir para ajudar se for o caso: é inútil. Na nossa via, no nosso humilde carreiro, imiscui-se sempre, ergue-se por hábito, apresenta-se triunfante, o desatino. Ninguém desatina por acaso, à excepção do mundo inteiro à nossa volta, cuja propensão para o desatino parece ser uma espécie de vício. Quando tudo se emproa ares de correr bem, é quando qualquer coisa desagradável lá tem de acontecer. Para nos estragar o humor, arruinar o dia e fazer descrer dos projectos. Ele está em todo o lado, o desatino. O desatino é rei. Precisamente. É quando mais nos julgamos em controlo das nossas vidas – ganhando distância dos humores do chefe no emprego, fazendo das queixas sucessivas do cônjuge uma espécie de missa e das derrotas do nosso clube favorito algo de superficial –, ou seja, quando tudo finalmente corre bem, que novamente irrompe todo-poderoso, invasivo, inesperado, o desatino. Ele há desatinos de todos os tipos, mas uns desatinos são mais desatinados que os outros. Pouparei o amável leitor a uma lista, uma hierarquia, uma descrição de desatinos. Cada um terás os seus e o que é um desatino para um, não o é forçosamente para outro. Mas, idiossincrasias desatinadas à parte, a verdade é que a vida de todos se encontra extremamente bem recheada de desatinos. Ninguém se pode queixar de uma distribuição injusta. Há desatinos para todos e para todos os gostos. Parecem nascer debaixo das pedras, viajar nos cabos e concentrarem-se à nossa porta, à medida de cada um. Dizem que o desatino começou no Paraíso. Isso só prova que até nesse espaço de beatitude, onde Deus e os animais falavam com o Homem, já havia desatinos. Crenças e livros sacros de lado, ensina-nos hoje a ciência que o princípio foi um big desatino. O desatino acompanha-nos desde o alvorecer até à morte, até porque ela é, na maior parte dos casos, um grande desatino. Já a vida é diferente. Ou será que não é? Para viver, em geral, a vida tem que consumir vida e isso é, no mínimo, estranho e pouco solidário. Quando o leão come o carneiro, não estará a comer também um pouco de si mesmo? Ou seja, os seres vivos deviam sobreviver à conta de coisas inanimadas para não serem predadores no seu próprio reino. Mas não, a coisa não foi assim construída. Pelo contrário, foi feita para as hienas fossarem nos desvalidos, as aranhas paparem as moscas e os gatos comerem os ratos que, por sua vez, não raro chamam um doce a outros elementos da sua própria espécie. Enfim, um desatino… um acumular sucessivo de desatinos. Onde pára a harmonia, meus amigos? Onde se esconderam a temperança, o equilíbrio, o bom senso? Por onde andam a benevolência, a piedade, a contrição? Olhamos à volta e damos por nós rodeados de desatinos, próprios e alheios; alguns provocados por nós, a maior parte pelo mundo, como se eles fossem os pontos e as vírgulas do texto plasmado no Livro do Destino. Viver tornou-se numa descida de um rio cheio de escolhos, de remoinhos, de troncos flutuantes, quando não de dissimulados hipopótamos e pétreos crocodilos. Bem nos tentamos desviar mas bem sabemos ser uma missão impossível. Quantas vezes não chocamos – e de frente – e se desfaz a frágil canoa onde vagueia a nossa existência? Quantas vezes não suamos no desespero de torcer o leme do destino, enquanto a corrente trocista nos empurra para o desatino seguinte? Os leitores sabem do que estou a falar. E, por isso mesmo, ficará por aqui mais este ténue, simplório, beduíno, desatino.